16 de abril de 2024
Memória

A história da fundadora da Pastoral da Criança, Zilda Arns

A Dra. Zilda Arns Neumann foi médica pediatra e sanitarista, fundadora e coordenadora internacional da Pastoral da Criança, fundadora e coordenadora nacional da Pastoral da Pessoa Idosa, organismos de ação social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Também foi representante titular da CNBB, do Conselho Nacional de Saúde e membro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES).  Entrevista gravada em janeiro de 1998. Foto de Wilson Dias. 

José Wille – Há 150 anos, a família Arns chegava ao Brasil…

Zilda Arns – Exatamente. Em 1848, meus bisavós e tataravôs, também por parte de pai e mãe, chegaram ao Brasil e se instalaram em Santa Catarina.

José Wille – E fundaram uma cidade.

Zilda Arns – É… Foram primeiro para São Martinho e depois meu pai, aos 18 anos, foi para o sul de Santa Catarina, logo depois de Criciúma, um pouco antes de Araranguá e fundou junto com dois amigos o município de Forquilhinha.

José Wille – Os imigrantes não podiam contar com o governo na época. Eles se organizavam por conta própria, com suas próprias comunidades. Como foi esse trabalho de instalação?

Zilda Arns – Sou a décima segunda de 13 irmãos e, portanto, não vivi os primeiros tempos, mas no meu tempo não se contava com o governo. Eu mal sabia que existia governo. Nós mesmos construímos a escola, a biblioteca pública, a igreja, a casa do padre e das irmãs. Tínhamos uma atividade comunitária muito intensa.

José Wille – E seus pais se dedicavam à agricultura, pecuária e comércio na cidade.

Zilda Arns – Indústria, fábrica de queijo, de banha e de outros, que depois se transformaram em uma cooperativa. Todos os colonos participavam do mesmo empreendimento.

José Wille – Como foi, para uma colônia alemã, a Segunda Guerra Mundial em Santa Catarina?

Zilda Arns – Eu era criança naquele tempo, mas nós sofremos muito, porque um tio meu, o tio Jacob Arns, um grande professor, foi preso por 9 meses só porque acharam algo de geografia alemã na gaveta da cozinha. E estávamos muito apavorados que pudessem prender meu pai. Nós falávamos sempre em alemão, mas, quando víamos uma pessoa estranha, tínhamos um código e começávamos a falar em português.

José Wille – Como era para uma criança, ser considerado um estrangeiro na sua própria pátria?

Zilda Arns – A gente era de origem alemã e os outros eram os brasileiros. Então, realmente era uma questão muito difícil, uma questão cultural que, aos poucos, foi se desfazendo. Nós viemos para Curitiba estudar, porque meus pais davam muito valor ao estudo e a gente foi incorporando a cultura brasileira.

José Wille – A música era uma tradição da família.

Zilda Arns – Nós tínhamos uma vivência familiar fortíssima. Todas as noites nos reuníamos para rezar e cantar a três, quatro vozes. E até hoje os irmãos, ainda 12 vivos, quando nos reunimos, sempre cantamos da mesma forma. Tínhamos uma tradição de música, pois todos nós tocávamos e cantávamos… Eram muito bonitas a vida familiar e a vida comunitária. A gente na escola aprendia flauta, participava de coral, esportes… Eu considero hoje que a escola que tínhamos era realmente um privilégio.

José Wille – Dos treze irmãos, seis foram para a carreira religiosa – até uma irmã adotiva também. Era muito forte a religião na família.

Zilda Arns – Eram valores culturais. Por exemplo, lembro-me que, quando era criança, a mamãe fazia pão e mandava levá-lo para a casa do padre, para as irmãs. Quando passavam visitas importantes, sempre iam a nossa casa. A religião ocupava um lado cultural muito grande – até hoje – e creio que é por isso que toda a família, não só os consagrados, é muito religiosa.   

José Wille – Dom Paulo Evaristo Arns, seu irmão, que é cardeal de São Paulo, seguiu essa mesma trilha…   

Zilda Arns – Ele é o quinto dos 13 irmãos, e é precedido por uma freira, e duas freiras irmãs de sangue o seguem. Mais tarde, uma senhora alemã em Porto Alegre morreu no parto e meu pai, com muita pena dos órfãos, adotou um casal e essa menina virou freira também.   José Wille – Existia também o incentivo para a carreira religiosa?   

Zilda Arns –Não, eu creio que isso brotava. Até papai, muitas vezes, freava um pouco. Lembro da minha irmã mais velha, que queria estudar no colégio de freiras. Meu pai lhe disse que deveria completar 20 anos para saber se realmente queria seguir a vida religiosa. Então, ele não incentivava, mas sempre procurava realmente uma decisão muito consciente.   

José Wille – Dom Paulo Evaristo Arns, principalmente no período de repressão no governo militar, teve um papel bastante importante como defensor dos direitos humanos dos perseguidos. A senhora com muita frequência ia a São Paulo, pois estava estudando. A senhora acompanhou esse trabalho do seu irmão?   

Zilda Arns – Ele realmente foi um pastor para todas as pessoas, e as que mais sofreram são as que mais ele ajudou na época. Em 1977, eu fiz o curso de Saúde Pública e fiquei o ano inteiro na casa dele. Sempre voltava nos finais de semana para Curitiba, mas durante a semana estava lá e presenciei muitas mulheres entrando na residência dele, chorando e pedindo sua ajuda, pois o marido estava desaparecido e, às vezes, o filho também. E havia também senhoras argentinas, que vieram pedir socorro a ele pelo mesmo motivo. E ele sempre as atendia com calma, pois tinha muito diálogo e muita coragem. Ele foi ameaçado muitas vezes de morte, mas acredito que jamais pensou em deixar de atender aqueles que ele considerava como seus filhos nesse momento de perseguição política.   

José Wille – Foi um importante negociador para essas pessoas que estavam desaparecidas e que poderiam estar sendo torturadas, presas. Ele tentava descobrir a localização dessas pessoas.   

Zilda Arns – Há quatro anos, ele foi homenageado no Congresso e uma infinidade de deputados federais e senadores se referiu a Dom Paulo Evaristo Arns como aquele que “não os deixou serem presos ou conseguiu tirá-los da prisão”. O presidente Fernando Henrique também diz que lhe deve essa gratidão.   

José Wille – Dos treze irmãos, todos estudaram e tiveram formação superior?   

Zilda Arns – Dos treze irmãos, doze tiveram formação superior. Nove professores, dois engenheiros, e eu, médica. Nós temos um agricultor, que não quis prosseguir com seus estudos, apesar de ser muito inteligente, pois preferiu ficar na agricultura.   

José Wille – E seu pai comprou uma casa em Curitiba para que os irmãos pudessem ficar aqui estudando naquela época de formação, como um ponto de concentração da família.   

Zilda Arns – Nos primeiros tempos, os meus irmãos estudavam no Colégio Estadual e moravam em uma pensão dos padres franciscanos; minhas irmãs estudavam na Divina Providência ou no Coração de Jesus e moravam com as irmãs do Emiliano Perneta e Sagrada Família na pensão. Quando eu vim para Curitiba, papai já havia comprado 3 lotes na Ângelo Sampaio. No meio, ele construiu a casa; de um lado, um campo de vôlei; no outro lado, era o quintal, onde plantávamos verduras, tínhamos galinhas etc. Assim, tivemos oportunidade de estarmos juntos. Sempre éramos em sete, oito ou nove irmãos estudando juntos.   

José Wille – A senhora foi uma atleta importante de vôlei aqui no Paraná.   

Zilda Arns – Nós estudávamos, chegávamos em casa e jogávamos vôlei com a vizinhança. Fui campeã de vôlei do Paraná, no segundo grau – naquele tempo, Científico – pelo colégio Divina Providência por 2 anos e depois pelo Coração de Jesus no terceiro ano. E foi muito importante, pois muita saúde que eu tenho hoje, viajando pelo país inteiro e quase não parando, devo à infância muito saudável e também à juventude com muito esporte.   

José Wille – No começo da década de 50, para ir à escola aqui em Curitiba era necessário usar dois sapatos?     

Zilda Arns – Nós morávamos na Ângelo Sampaio e era uma lama só. Nós pegávamos o bonde na maternidade Vítor do Amaral. Então, eu ia com o sapato velho e lá na maternidade – como tinha sempre folhagens, matinhos – escondia o sapato velho – ninguém roubava naquele tempo – e colocava o sapato e meia limpos para ir ao colégio. Porque o colégio exigia que andássemos impecavelmente bem-vestidos.   

José Wille – E a Universidade Federal do Paraná? A senhora começou em 1953 o curso de Medicina. Poucas mulheres pensavam em cursar Medicina na época.   

Zilda Arns – Passaram no vestibular seis mulheres e cento e quatorze homens. E como eu estudei em um colégio de freiras, o colégio Divina Providência, passei bem no vestibular, mas estranhei muito estar, nos dois primeiros anos de universidade, no meio de tanta rapaziada. Eu não estava acostumada, mas, do terceiro ano em diante, fui me adaptando.   

José Wille – E depois de formada, as pessoas ainda tinham resistência em buscar uma médica, já que não tradição?   

Zilda Arns – Moisés Lupion era o governador do Paraná e me nomeou um mês após a formatura. Tivemos que nos agilizar, buscar o meu diploma no Ministério da Educação, que ficava no Rio de Janeiro, para não perder a nomeação. E, em São José, no dia 19 de março, eu comecei a trabalhar no hospital César Perneta, único hospital para indigentes naquele tempo. Eu não sentia resistência por ser mulher, porque a fila de mulheres que queria consulta comigo não acabava nunca. Chegava às 7 e 15 da manhã e, ao meio-dia  e meia, ainda tinha gente esperando, querendo se consultar comigo. Eu perguntava às mulheres porque não iam com outros médicos, outros pediatras melhores do que eu. E elas diziam que gostavam de mim, porque eu explicava bem. Então, eu creio que um pouco de magister toda a nossa família tem. Papai sempre dizia que eu deveria ser professora e, realmente, como médica, trabalhei muito na educação das mães.   

José Wille – Com tantos na família, seis pessoas seguindo a carreira religiosa, a senhora pensou em algum momento também em ser freira?   

Zilda Arns – Na juventude, nós tínhamos muito lazer no esporte e, aos sábados, nós jogávamos tênis de mesa. Fui campeã de tênis de mesa do Paraná durante um ano. E a gente jogava muito e, à noite, passavam filmes de missionários na Congregação Mariana do Bom Jesus. E um filme me impressionou muito: eram os missionários do Amazonas, cuidando das comunidades ribeirinhas, aquela pobreza… Eu disse “vou ser médica e vou para o Amazonas andar de barco”. Eu tinha 15 anos. Depois, passou mais um sobre as favelas do Rio de Janeiro. E eu disse “olha, confirmou minha vocação, eu vou ser médica nas favelas do Rio de Janeiro”. E minha vida foi assim: me formei médica no dia 18 de dezembro e casei no dia 26 de dezembro do mesmo ano, tive 5 filhos e fiquei 18 anos casada, até ficar viúva. Criei os filhos e, hoje, não sou religiosa, mas me sinto participante. Ando de barco, vou às favelas, todos aqueles sonhos que eu tive se multiplicaram por mil e estou realizando todos.   

José Wille – Até a empregada da família acabou se tornando freira…   

Zilda Arns – Exatamente! Teve uma empregada que trabalhou 6 anos e depois se tornou  freira. Cada um tem uma vocação. Eu sinto prazer em ajudar os outros. Sinto como uma luz divina dentro de mim. Quando comecei a imaginar a Pastoral da Criança, senti como se Deus me inspirasse e que o caminho iria dar certo. E está dando certo no Brasil e no mundo inteiro. Então, é uma vocação, é uma certeza de ser guiada por Deus e que tenho, como cidadã, um papel decisivo na justiça social, para que todos tenham acesso a uma vida mais digna.   

José Wille – Com cinco filhos a senhora ficou viúva muito cedo.   

Zilda Arns – Foi muito difícil! Meu marido, o professor Aloísio Bruno Neumann, era diretor da Faculdade de Administração e Economia do Bom Jesus e estava no sexto ano como diretor. Morreu de repente, ao tentar salvar uma menina no mar; teve um enfarte e morreu dentro da água. E eu fiquei de uma hora para outra viúva, com o mais velho com 14 anos e a menor com 4. Realmente, foi muito difícil, mas havia a minha família, minha grande família, meus irmãos, que estavam em volta de mim e me ajudaram demais. Principalmente no primeiro ano, que é um período de adaptação muito forte, uma vida muito diferente – meu marido realmente me ajudava muito, pois era muito bom pai. Então, eu tive que fazer os dois papéis. As crianças, que não esperavam a morte do pai, não estavam preparadas… Mas Deus me ajudou e hoje todos já estão formados e tocando a vida para a frente.   

José Wille – Mas era uma situação bastante difícil, porque exercia os dois papéis e tinha 5 crianças…   

Zilda Arns – É, exatamente! Eu tinha que trabalhar muito e tinha duas empregadas, que faziam muito bem o trabalho. Quis dispensar uma e meus filhos disseram “não, mãe, elas precisam do sustento delas. A senhora tira todos os supérfluos de nós, por exemplo, sorvete, iogurte, e fica com a empregada”. E eu pensei “eles têm razão, porque se podem cortar muitas coisas, mas para tirar alguém do emprego deve-se pensar 3 vezes”. E fiquei com as duas empregadas e foi muito bom, porque, 5 anos depois, eu comecei a Pastoral da Criança, viajando bastante e desenvolvendo muita atividade profissional. E elas me ajudaram muito a criar os filhos.   

José Wille – Como médica pediatra e sanitarista, dentro dessa situação difícil, mesmo assim a senhora teve uma carreira muito longa e muitos cursos, principalmente no exterior. Como foi possível conciliar?   

Zilda Arns – Quando era namorada do meu marido, eu dizia que não ia me casar, porque não podia ser médica pela metade. Para ser médica inteira, precisava estudar, me aperfeiçoar. Ele disse “você casa comigo, que eu dou um jeito de você se aperfeiçoar”. E realmente ele sempre me incentivou a fazer cursos. Parei um pouco somente quando fiquei viúva, mas logo depois recomecei e meus filhos sempre me apoiaram. Quando morreu meu marido, eu constitui com meus 5 filhos um conselho. Se todos os filhos fossem unidos e pensassem diferente de mim, eles ganhavam. Então, eles aprenderam a resolver as coisas sempre com responsabilidade e isso me ajudou muito a desenvolver minha vida profissional, porque eu sabia que eles resolviam em comum acordo.   

José Wille – O início de sua profissão foi no hospital César Perneta, um hospital voltado a crianças.   

Zilda Arns – Exatamente. Devo muito ao hospital César Perneta. Trabalhei bastante e trabalhei principalmente com lactentes, crianças menores de um ano. Foram 6 anos de muito trabalho.

José Wille – E a Secretaria de Saúde? A senhora foi chefe de divisão, trabalhando no governo do estado.   

Zilda Arns – Eu fui diretora da Saza Lattes por 13 anos, e o doutor Plínio de Matos Pessoa, um grande pediatra, me pediu para coordenar o setor de bem-estar do Departamento Estadual da Criança. E eu fui e fazia as duas funções, de manhã em um e à tarde em outro. Desenvolvi, então, o Clube de Mães do Paraná. Até hoje eu viajo para o interior e vejo o Clube de Mães por aí e fico muito feliz. Eram 11 dias de curso de orientador de Clube de Mães e também havia curso para crecheiras. E, mais tarde, quando coordenei a primeira campanha de vacinação contra a paralisia infantil no Paraná, em 1980 – e me saí muito bem – fui convidada pelo Ney Braga, para coordenar a Saúde Materno-Infantil no Paraná, com Oscar Alves na Secretaria.  Esta foi a primeira experiência em Saúde Pública. Eu vinha da Saza Lattes, que era particular, com muitos médicos, enfermeiras, fazendo um trabalho excelente, que era considerado padrão na época. E fui trabalhar com funcionários públicos. E descobri também que funcionário público é excelente, ele precisa de motivação, animação e, com isso, produz um bom trabalho.   

José Wille – A associação Saza Lattes é um trabalho filantrópico. Como era essa atividade?   

Zilda Arns – Eu fundei 21 Postos de Saúde e 25 Clubes de Mães na periferia de Curitiba. O doutor Plínio de Matos Pessoas dizia “você arruma as casas, junta as paróquias e o Estado vai lhe dar o dinheiro para pagar os médicos, enfermeiros e pessoal de enfermagem etc”. E eu fazia isso: coordenava essa parte, administrava e era muito interessante. Hoje, os residentes ficam muito no hospital, mas naquele tempo os residentes iam duas horas por dia à periferia trabalhar nos postos de saúde. E eu encontro médicos hoje dizendo que aprenderam muito de Saúde Pública naquele tempo, com duas horas de periferia. Eles assinavam ponto na entrada e na saída – realmente cumpriam esse horário – e faziam assim uma clínica excelente.   

José Wille – O objetivo maior dos Clubes de Mães era a conscientização sobre prevenção a doenças?   

Zilda Arns – A inspiração foi a seguinte: quando eu entrei na Saza Lattes, já estava começando o Clube de Mães. Mas, quando eu entrei, vi que realmente para aquelas crianças, com as cabecinhas cheias de piolho, sujinhas, toda hora com diarreia, cheirando mal, não adiantava a gente colocar medicamentos, por exemplo, para piolho, sarna e  vitamina. Precisávamos instruir as mães sobre como cuidar melhor das crianças. E a saída foi o Clube de Mães. A gente escolhia as mães que mais precisavam e, uma vez por semana, elas ficavam a tarde inteira lá. E nós fizemos várias coisas interessantes que hoje eu estou estimulando o Brasil a fazer. Por exemplo, a escola de educação familiar era de classe média e eu falei com a diretora se as moças não poderiam cuidar das crianças, enquanto as mães estavam aprendendo. Elas ganhavam nota por isso. E as moças iam à tarde, sempre em grupos diferentes – eram 25 Clubes de Mães – e elas cuidavam das crianças, brincavam e se envolviam muito com as crianças. E as mães ficavam sossegadas, aprendendo costura, puericultura e melhorando sua autoestima e o sentido de cidadania. Realmente, a educação das mães, deixando que elas tivessem um dia de lazer, com alguém para cuidar das crianças para que elas pudessem aprender, era uma coisa fantástica.   

José Wille – A senhora tem um trabalho de 15 anos coordenando a Pastoral da Criança e foi a fundadora. Como surgiu a ideia e qual era a preocupação na fundação da Pastoral?   

Zilda Arns – Você sabe que, em todos os países da América Latina, quando muda o governo, principalmente quando muda o partido, tudo de bom que fez o governo anterior o novo governo tem necessidade de destruir. E eu era coordenadora de Saúde Materno-Infantil do Ney Braga, e, modéstia à parte, nós fizemos muito nesta questão. Até hoje o pessoal tem muita saudade… Porém, me deixaram na gestão seguinte de escanteio, e eu estava deprimida, pensando “tenho seis especializações, fiz Saúde Pública e agora estou sem poder aproveitar os dons, a vontade que eu tenho de fazer as coisas”. Mas também não podia deixar de trabalhar, pois tinha que sustentar meus filhos. Nesse período difícil, recebi um telefonema do meu irmão Dom Paulo Evaristo, que vinha de Genebra – onde estivera como representante da Igreja Católica em uma reunião da ONU sobre a paz. E ele me disse “Zilda, James Grant, o diretor-executivo da Unicef, disse que a Igreja poderia salvar muitas crianças da desnutrição, da ignorância das mães, se realmente fizesse um bom trabalho junto às famílias. Você não quer fazer um plano?”. Pensei “Deus não abandona a gente! Fechou uma uma janela, mas está abrindo uma porta”. Já tinha arrumado meu consultório particular, minha irmã me ajudara a mudar o tapete, cortina, ficara bonito; já tinha me apresentado à Unimed e a outros lugares para trabalhar como médica credenciada e, de repente, surge esse fato. A Unicef me chamou a Brasília, e eu, sentada na sala da Unicef, comecei a escrever o plano. Como eu conheço bem a Igreja e conhecia muito bem a Saúde Pública, pensei em trabalhar com a Igreja e com as famílias, porque é onde começam a ignorância, as doenças, a violência e, se a gente consegue combater isso, corpo a corpo, vai ser uma ajuda tremenda. Porque só um posto de saúde funcionando como hospital não é o suficiente. Eu sempre digo: os mais pobres não vão à missa, não têm espaço nas creches e também não vão ao posto de saúde. Os bem miseráveis ficam esperando em casa e eles mesmos acham que não têm direito a nada. E o diretor da Unicef no Brasil, que era Jacob Mattai, o indiano, disse que aquilo era fantástico. Então, nós fomos apresentar ao Dom Ivo Lorscheider  – naquele tempo, presidente da CNBB – e a Dom Luciano Mendes de Almeida – secretário geral -, que acharam a proposta muito interessante e pediram para eu começar o plano em uma paróquia. Como funcionária pública, teria que trabalhar no Paraná, para não ter que, a cada vez, pedir licença para ir para outro estado, sair no Diário Oficial, era muita burocracia. Dom Paulo disse para eu começar em Londrina, com Dom Geraldo Magela Agnelo, arcebispo de Londrina, pois ele tinha muito diálogo, era muito bom para trabalhar e já havia coordenado as pastorais em São Paulo. Dom Geraldo ficou animadíssimo e, então, fui para lá, pegando o ônibus de noite. Cheguei de manhã cedo e à tarde já estava começando a trabalhar com ele. Segundo ele, havia um lugar chamado Florestópolis, que era de boias-frias, e era tão difícil aquela paróquia que não paravam padres lá – muito domínio dos fazendeiros de cana-de-açúcar, aquela coisa… E também tinha uma paróquia na cidade, de operários, que era muito interessante. Optei por começar em Florestópolis, por ser mais fácil de verificar os dados oficiais de mortalidade. E, também, por que no exato instante em que conversávamos sobre o assunto, chegou a irmã Eugenia Pietá de Florestópolis, coordenadora de lá – uma resposta de Deus, com certeza. E assim fomos até lá, dividimos toda a paróquia em pequenas quadras e começou a Pastoral da Criança. O pessoal de lá foi maravilhoso e, então, escolhemos as lideranças de cada quadra, treinamos essas lideranças e reduzimos drasticamente a mortalidade infantil.   

José Wille – E como foi a expansão?   

Zilda Arns – Começamos em Florestópolis e, quando estava com 8 meses, foi feito um filme pela Unicef, que achou fantástico o trabalho, e nós o apresentamos na assembleia geral dos bispos. Os bispos ficaram muito encantados e pediram para que eu fosse à diocese deles. Todos os estados queriam que eu fosse lá.  Fui primeiro para Maceió, em uma favela chamada Brejal, com 4 mil favelados morando em casinhas que afundavam por causa do brejo, uma dificuldade tremenda, uma mortalidade de três, quatro mortes por dia. E, então, nós começamos lá e depois fomos até Bacabal, no Maranhão, no Rio Grande do Sul, em Santo Antônio da Patrulha, fomos para São Paulo e demos assistência… Eu mesmo treinava as líderes e escrevia materiais sobre aleitamento materno, hidratação oral e as cinco ações básicas de saúde, assistência à gestante e vacinas. Eu copiava e viajava com mais ou menos 120 quilos de material educativo.   

José Wille – E é importante ressaltar que grande parte da mortalidade infantil, como outros problemas brasileiros, poderia ser resolvida através da comunicação, da informação…   

Zilda Arns – Exatamente! Em todos os países pobres, cerca de 90% das mortes podem ser facilmente evitadas se a gente cuidar da família, para que a família tome decisões corretas. Por exemplo, a saúde da gestante: é importante que ela coma, porque, apesar de pobres, muitas vezes eles jogam fora coisas que não precisavam jogar. Ou fuma, ou então não tem uma vida adequada à saúde do bebê, com o pré-natal, um bom parto… E também há a diarreia, que necessita que se ferva ou se filtre a água; o soro caseiro… As pneumonias e a gripe… Há também o aleitamento materno, que é a primeira escola do amor ou do diálogo. Então, alguém deve ajudar a mãe a realmente decidir o certo para cuidar bem da criança, já dentro da barriga da mãe e também no primeiro ano, principalmente. Hoje, as pesquisas demonstram que uma criança bem cuidada no primeiro ano é mais inteligente, tem mais capacidade de diálogo, melhores conexões nervosas, mais resistência para o resto da vida. Uma criança maltratada no primeiro ano de vida é muito violenta e tem mais facilidade de seguir o caminho da criminalidade, das drogas e outras coisas mais. Então, eu, conhecendo toda essa situação, realmente me apaixonei muito pelo trabalho e a gente viu um resultado extraordinário. Cada vez que eu chegava em Florestópolis, eu perguntava quantas crianças nasceram, quantas estavam abaixo do peso, quantas estavam mamando, quantas desnutridas, e começou o melhor sistema de informação que existe no mundo, segundo a Unicef e a Organização Pan-Americana de Saúde: o caderno da líder. Ela mesma anota alguns indicadores e nós informatizamos esses indicadores. Desde 1987, nós estamos informatizados e sabemos exatamente a quantas nós andamos na Pastoral da Criança, na questão da mortalidade infantil, da desnutrição, do baixo peso ao nascer e outras coisas mais. E aquilo foi evoluindo. Eu comecei naqueles lugares de que falei e não vencia, pois era sozinha. Daí, a Secretaria de Saúde me cedeu a Rose, uma datilógrafa – que me ajudou muito, pois sou péssima datilógrafa – e, mais tarde, eu recebi uma secretária, o que melhorou bastante. E quando o plano foi expandido para o Brasil, também um contador começou a me ajudar. Aos poucos, formamos a coordenação nacional, uma equipe, e treinamos, em 1985, as primeiras coordenadoras diocesanas. Vinha pessoal do Brasil, principalmente do Nordeste. Nós as treinávamos em Londrina, com estágio em Florestópolis. E eu visitava depois os locais de onde elas vinham para ver se o trabalho estava seguindo uma metodologia científica boa e avaliando os resultados. E assim foi se expandindo. Hoje, a minha permanência é boa, é gostosa, mas não mais necessária. A Pastoral da Criança já está organizada em todo o país.   

José Wille – Doutora Zilda, a senhora recebeu várias homenagens de organizações de direitos humanos, do governo Fernando Henrique Cardoso, da ONU, através da Organização Mundial de Saúde, como melhor administradora na área da saúde das três Américas, da Unicef  – destaque em 1988, e outras homenagens de órgãos internacionais. E também teve muitos cursos internacionais e convites para sair do Brasil. A senhora encara esse trabalho aqui como uma missão e por isso não aproveitou essas oportunidades, que seriam profissionalmente melhores?   

Zilda Arns – Eu sou muito apegada aos meus filhos, à minha família e também a Curitiba. Eu acho excelente essa terra! Para mim, o melhor lugar do mundo para morar é aqui, onde me criei desde os 10 anos. Então, não troco esta cidade por nada desse mundo. A Unicef me convidou 3 vezes, mas nem cogito.   

José Wille – Falando dos filhos, a senhora conseguiu formar todos eles, mesmo viúva.   

Zilda Arns – Graças a Deus! O mais velho, Rubens Arns Neumann, é veterinário, um grande veterinário. Ele entende muito de vaca leiteira, transplante de embriões, tem uma qualidade excelente de leiteria e ganha sempre os melhores lugares nas exposições. É casado com a Ângela, que também é veterinária. E depois tem o Nelson, que é médico, fez mestrado em Epidemiologia, agora está fazendo doutorado na USP e me ajuda na Pastoral da Criança já há 8 anos. Me ajuda muito. Ele é casado com Luciana, que é fisioterapeuta. Depois, a terceira, Heloísa, que é psicóloga especialista em recursos humanos, que é uma área com que toda a minha família gosta de trabalhar – com gente… E ela é casada com um agrônomo de Entre Rios, Bernardo Stut. E tem também o Rogério, que é solteiro ainda, administrador de empresas, e a Silvia, também solteira e administradora de empresas. Graças a Deus, todos formados e responsáveis. Dizem que as mães esquecem os trabalhos que os filhos dão, mas eu realmente não lembro que eles me dessem muito trabalho. Eu sempre disse: eu trabalho assim e o trabalho de vocês é estudar. Então, toquem o bonde para a frente. E, graças a Deus, nenhum perdeu um ano de estudo.   

José Wille – A senhora, em 1994, recebeu um convite do governo Itamar Franco para o cargo de coordenadora geral de Saúde Materno-Infantil. Como foi essa experiência em um cargo público no Governo Federal?   

Zilda Arns – Foi muito interessante e não foi nem uma novidade, porque, na área materno-infantil, me sinto muito segura, tenho muita experiência, pois também coordenei a Saúde Pública no estado do Paraná, que me deu um chão de experiência muito bom. Mas foi por pouco tempo, praticamente um ano e um mês, porque foi no final do governo Itamar. Na época, eu via que uma das falhas do país era não ter um sistema de informação. Por exemplo, a Pastoral da Criança sabe exatamente em cada comunidade como é a mortalidade infantil, desnutrição; e o Ministério da Saúde não tinha esses indicadores. Então, eu dediquei praticamente 8 meses com o grupo do próprio Ministério da Saúde, que colaborou fantasticamente comigo. Com o DATASUS e qualquer coisa que eu planejasse, eles me ajudavam. E nós testamos um modelo, mas, infelizmente, na hora de fazer as compras dos aparelhos, terminou o governo Itamar, começou outro e a coisa não foi para a frente.   

José Wille – O mais difícil nos governos realmente é a continuidade dos projetos, por mais importantes que  sejam…   

Zilda Arns – É, mas nos fizemos encontros regionais de saúde materno-infantil e hoje, quando eu vou a qualquer lugar – há pouco tempo estive em Manaus – ainda o pessoal vem ao meu encontro. Vou ao Rio de Janeiro e o pessoal diz “que saudade” e todo mundo gosta da gente. Então, eu creio que foi um ano muito proveitoso. Fiz o que pude, mas, para consolidar um trabalho, deveria ter ficado mais um ano e meio. Mas eu achei que também estar longe da família, em Brasília, é fogo. Dia de semana vai bem, mas fim de semana é difícil. E também porque eu achei que na Pastoral da Criança eu tinha uma missão muito grande e tinha mais facilidade de alcançar os objetivos.   

José Wille – De forma geral, dentro da Pastoral da Criança ou em cargos públicos, qual o balanço que a senhora faz da sua maior luta, que foi contra a mortalidade infantil no Brasil, que sempre teve índices alarmantes e que, com o tempo, foram caindo?   

Zilda Arns –Posso dizer uma coisa com muita honestidade: fui feliz em todas as etapas de minha vida. A infância foi de fazer inveja! Nós morávamos perto de um rio e eu tomava banho todo dia nele, brincávamos muito, cantávamos muito. Fazíamos tudo aquilo que hoje a gente diz que as crianças devem fazer. Depois, vim para Curitiba estudar, pratiquei muito esporte, estive nos melhores colégios, trabalhei, suei, mas sempre foi muita felicidade. E casei, tive cinco filhos, fui muito feliz. Fiquei viúva, sofri um pouco e passei por cima e fui feliz, porque superei. Depois, comecei também na Saza Lattes, 13 anos seguidos, uma experiência extraordinária. E na Pastoral da Criança, também. Para dizer onde eu fiz mais, creio que todas as vezes que eu tive o poder na mão, eu fui feliz nos resultados. Mas, com a Pastoral da Criança, não tive nenhum poder, porque ela trabalha diretamente com as famílias. É um trabalho humanitário extraordinário e com tantos líderes… São 115 mil líderes voluntários, e eu gostaria de fazer uma homenagem para essa gente que trabalha de graça, dia e noite, com tanto amor, com tanto carinho. Eu creio que é uma experiência sui generis e acima do normal.   

José Wille – Há muita polêmica em torno da associação entre Igreja e política. Qual deve ser a participação, na sua forma de ver, nas questões sociais e políticas por parte da Igreja, já que a Pastoral da Criança surgiu na CNBB, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil?   

Zilda Arns – A Igreja passou por diversos momentos. No tempo da ditadura, manteve-se em uma oposição forte, pelo problema social e pela democracia. E Dom Paulo Evaristo foi realmente um líder nesse ponto. E, depois, naturalmente, as coisas vão evoluindo e hoje a missão da Igreja é participar da construção de uma sociedade justa e fraterna. Esses são os objetivos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, e a Pastoral da Criança também participa dessa construção. Hoje, a gente não só critica, mas também ajuda a construir. A Pastoral da Criança é conhecida no Brasil inteiro como parceiro importante. Quer dizer, quando nada funciona, a Pastoral vai lá, começa o trabalho, faz as crianças terem saúde e faz o Governo funcionar. Então, isso é uma posição da Igreja de hoje, que é participar da construção.   

José Wille – Não é um órgão público e funciona melhor que um órgão público…   

Zilda Arns – Tem talvez mais facilidade, porque tem muita coisa que o órgão público tem que fazer mesmo. E educar as famílias e estar presente no dia a dia delas é mais fácil para os líderes comunitários voluntários, com uma mística cristã, com uma mística de corresponsabilidade social, cidadania. Isso é mais perseverante e mais profundo.   

José Wille – Quando se fala em combate à pobreza no Brasil, muita gente defende um controle mais efetivo da natalidade. O que a senhora acha?   

Zilda Arns – Eu acho que é muito errado. Isso não deu certo em lugar nenhum e também não daria no Brasil. A pobreza se erradica pela melhoria do nível de estudo das pessoas, da educação, da saúde, da participação e da distribuição de renda. É nisso que está a grande transformação social. A Pastoral da Criança, por exemplo, cuida da área da Saúde, porque uma criança que é bem cuidada tem muito mais chance de participar futuramente, tanto na escola como no trabalho e na família. Então, nós temos que salvar essas crianças, porque a pobreza não acaba se as crianças estão estragadas. E, em segundo lugar, a educação. Por exemplo, quanto mais educação, menos mortalidade infantil. Também vemos que a marginalidade vem muito do desemprego e da ignorância. Então, a gente tem que dar curso de alfabetização, cuidar bem das escolas, ter a participação de todos e que eles se sintam abrangidos pelas políticas públicas básicas. Eu creio que a redução da mortalidade infantil, como a redução da pobreza, a diminuição da classe excluída, se dão principalmente no cuidado com as crianças de hoje – muito cuidado com elas, que são sementes de paz ou de guerra. Se forem bem cuidadas, sementes de paz; se forem mal cuidadas, é uma pólvora que a qualquer momento pode explodir. E também devem ter boas oportunidades de educação, de participação. Eu creio que a redução da pobreza se faz com isso. O planejamento familiar é muito importante e todas as pesquisas indicam que, quanto melhor a instrução da mulher, melhor ela faz seu planejamento familiar.  

José Wille – E talvez, através da instrução, da educação, é que a taxa de natalidade brasileira tenha caido tanto nos últimos anos?   

Zilda Arns – É, também… Mas também houve abuso de muitos organismos estrangeiros, que promoveram muitas ligaduras de trompas. Nós temos dados de que, no Maranhão, em Goiás e em outros estados, mais da metade das mulheres com idade fértil está com as trompas amarradas. Essa fase está aos poucos passando, mas realmente marcou muito o declínio da fertilidade no Brasil. Também a mulher está sendo mais educada. Todas as estatísticas demonstram que a mulher está subindo mais rapidamente na educação que os próprios homens. Inclusive na universidade passam mais mulheres – no ano passado, foram 51% de mulheres contra 49% de homens. Acredito que a mulher mais educada faz também mais planejamento familiar.   

José Wille – Sobre a taxa de natalidade, a senhora teria os números, para exemplificar o que foi essa queda no Brasil nos últimos anos?   

Zilda Arns – Em 1977, eu fiz Saúde Pública na USP e nós tomávamos por base 5,6 filhos por mulher em idade fértil. Hoje, nós estamos em 2,2 aproximadamente e, em alguns estados, as estatísticas, ainda não publicadas oficialmente, demonstram 1,9. Nós declinamos rápido demais. Vai faltar gente para trabalhar, para manter os aposentados. A base, que era muito grande na população jovem, de repente fica muito reta e pode declinar, como aconteceu na França, na Alemanha e em outros países. O declínio da fertilidade no Brasil foi forte demais.   

José Wille – Podemos dizer que já há estabilidade no número populacional?   

Zilda Arns – Exatamente. O que se precisa é dar oportunidade de educação a todas as famílias, especialmente as mais pobres, que têm mais difícil acesso a informação. A Pastoral da Criança, em todas as ações básicas que realiza, tem um programa novo, que se chama Educação para a Afetividade, Sexualidade e Planejamento Familiar, baseado em uma grande pesquisa realizada em todo o país, com a colaboração de professores de 5 universidades. E nós vamos educar os jovens, os adultos e a terceira idade da mesma comunidade ao mesmo tempo, para dar impacto. Está dando um resultado extraordinário e eu creio que, no futuro, vai ser um dos principais programas mais aceitos no Brasil.   

José Wille – A senhora tem uma longa luta contra o aborto no Brasil, que é uma discussão permanente entre os políticos.   

Zilda Arns – O aborto é um crime. Não é assim como tirar uma verruga; você tira um ser humano. Essa lei, que tanto citam, é de 1940 e lá não se conhecia tanto o ser humano como se conhece hoje. A criança, quando é concebida, já é um ser humano completo em fase de desenvolvimento, como uma criança e um adolescente. Portanto, quem tira a vida de um feto está matando um ser humano. Eu não posso entender como deputados que são bons em muitas coisas defendem isso. E agora dizem que é para reduzir a mortalidade materna. Trabalho faz 40 anos na área materno-infantil e morrem muito mais mulheres por questões de mau parto, por câncer de útero e mama – que poderiam ser prevenidos – mais do que por aborto. Entendo que a gente deve realmente cuidar para que todas as mulheres tenham instrução e, se acontecer o estupro e uma gravidez resultante, a sociedade deve colaborar. Eu sempre digo para os deputados: se alguém está desempregado e os filhos estão morrendo de fome, e diz que vai roubar para matar a fome dos filhos, então, nesse caso, o roubo não seria uma coisa tão ruim. No entanto, ele pode até ser preso. Agora, numa gravidez por estupro, eu mato – quer dizer, respondo violência por violência muito maior. É muito maior essa comparação. De maneira que eu creio que toda a sociedade deve proteger o ser humano, a natureza, o respeito, e diminuir as causas dos estupros, que muitas vezes acontecem dentro da família, famílias com muita promiscuidade, com muitos problemas. Às vezes, o estuprador foi uma criança muito oprimida, muito maltratada e convive com problemas da primeira infância, talvez até antes disso. A gente tem que ter uma visão mais larga do que simplesmente querer aliviar uma mulher que sofreu um estupro.   

José Wille – A Igreja Católica é criticada como conservadora e, pelas posições que defende, teria responsabilidade pela pobreza, pelo excesso de natalidade em camadas mais pobres. Como a senhora responde a  essas críticas?   

Zilda Arns – Eu acredito que em muitas coisas a Igreja pode até ser culpada, quando se tem uma visão geral. Mas eu vou pelo Brasil inteiro e a países da África, e a Igreja Católica está firme, lutando pela saúde e educação, se esforçando realmente. Eu creio que todos nós temos que somar esforços, governo e sociedade. Eu sou muito pelas parcerias. Por exemplo, os prefeitos que fazem convênios com a Pastoral da Criança estão muito satisfeitos e nós também. Então, somando esforços naquilo que nos é comum, é muito melhor do que um ficar jogando contra o outro e jogando pedra na vidraça, o que é muito fácil.  

José Wille – E o fenômeno do crescimento das igrejas evangélicas, das pentecostais, da perda que a Igreja Católica tem de seus fiéis. Quais são os motivos fundamentais?   Zilda Arns – Eu acredito que a ignorância é realmente o fator mais forte e também há o proselitismo que muitas igrejas têm, ao prometer curas, empregos… Prometem tudo e os pobres vão atrás, porque acham que vão ser curados e, muitas vezes, são enganados. De modo geral, as pessoas têm necessidade de uma convivência mais humana, e a Igreja Católica, quanto mais humanitária ficar, quanto mais cuidado individualizado houver a todas as famílias, elas vão se sentir bem e não vão procurar outras igrejas.   

José Wille – E o futuro do país – dessa experiência que a senhora tem de tanto tempo cuidando das crianças – que caminhos a senhora aponta?   

Zilda Arns – Eu tenho uma certeza total que o futuro de qualquer país e do Brasil depende de duas coisas muito importantes. Em primeiro lugar, cuidar de cada criança muito bem, porque ninguém sabe… O ser humano é tão complexo, e quando ele é bem cuidado, mama no peito, é acarinhado, é atendido, brinca bastante e vai para uma escola boa, ele tem os alicerces para realmente construir o país. E, em segundo lugar, as políticas públicas básicas, quer dizer, água de qualidade para todos, alimentação barata, acessível a todos, emprego – há uma preocupação muito grande com o emprego e com a escola. Essas coisas são fundamentais para que o país vá para frente.   

José Wille – Doutora Zilda, muito obrigado pela participação.   

Zilda Arns – Eu que agradeço muito por partilhar com todos a minha vida, que foi realmente um presente de Deus, e que me faz sentir tão estimulada a todo lugar aonde vou.

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Redação Paraná em Fotos

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