27 de dezembro de 2024
Memória

Elisa Chechia Noronha foi uma das primeiras médicas do Paraná

 

 

Elisa Checchia Noronha graduou-se em Medicina em 1935, pela Universidade do Paraná, tornando-se uma das primeiras médicas do Brasil. Muito à frente de seu tempo, ao longo da carreira deixou sua marca na prática médica. São marcos desta trajetória a criação do Hospital e Maternidade Santa Brígida; a criação no passado do curso “Parto Sem Medo; e a introdução no Paraná do método contraceptivo intrauterino (DIU). Entrevista gravada em julho de 1997

 

 

José Wille – Doutora Elisa, como foi, em 1930, uma mulher fazendo o curso de Medicina, o que era muito raro na época?

 

Elisa Noronha – Por parte dos colegas, fui bem-recebida, porque o estudante prima por ser educado, por ser delicado. Fomos recebidas com festas. Por parte dos professores, nem tanto. Não houve festa. Houve professor que disse “Acabou-se a nossa aula agora, pois tem mulher aqui. E lugar de mulher é na cozinha”. E eu disse “Ora, doutor, tem tanta mulher na cozinha e a sua provavelmente deve estar lá. Mas resta lugar para nós aqui, ombro a ombro, com os senhores”. Mas fomos muito bem-recebidas pelos colegas e nunca encontramos dificuldades com eles. Eu, por exemplo, dava muita aula de Matemática, tinha que dar essas aulas, então, algumas vezes, deixava meu caderno para um colega, pedindo para tomar nota da aula. Sempre encontrei facilidade e gentileza da parte dos meus colegas. Dos professores, havia uma certa resistência, porque eles queriam contar umas coisas engraçadinhas e achavam que a nossa presença atrapalhava.

 

José Wille – Pelo jeito, a senhora se sentia à vontade, apesar de haver só duas estudantes na sala.

 

Elisa Noronha – Só duas. Eu nunca deixei alguma coisa sem resposta e sem crítica. Crítica conservadora, é lógico.

 

José Wille – E o trote para entrar na universidade? Já existia?

 

Elisa Noronha – Já. Faziam uma reunião, contavam histórias para ver a gente dar risada. Até os professores tomavam parte – e eu quero crer que, neste momento, o professor da universidade se ambientava com os alunos, tornava-se aluno novo lá dentro. Então, acho que foi, da minha vida, o mais feliz esse tempo de estudante de faculdade.

 

José Wille – Já havia seleção para entrar na universidade, em 1930?

 

Elisa Noronha – Já. E passei bem, em segundo lugar, dos 44 aprovados.

 

José Wille – O estudante tinha uma forma de se vestir tradicional – paletó, gravata e chapéu. Como era o comportamento do estudante naquela época? Era muito reservado?

 

Elisa Noronha – Não era tanto assim, mas era. E havia muito respeito entre um colega e outro. Esse negócio de brigar com seu colega não existia. Pelo menos na minha turma, não.

 

José Wille – A profissão de médico, na época, era muito valorizada. Havia estímulo dos pais para que se fizesse Medicina. A senhora teve isso em casa?

 

Elisa Noronha – Sim, não só na minha casa, como nos pais dos nossos colegas. A outra colega era de origem polonesa e, então, era mais reservada. E eu, como falo muito – sou descendente de italianos – tinha uma roda para conversar e a gente se dava tão bem que as reuniões com os colegas eu as fazia lá em casa. Até hoje, em 5 de dezembro, nós jantamos juntos.

 

José Wille – A turma ainda se encontra?

 

Elisa Noronha – Para chorar os desaparecidos, que são poucos.

 

José Wille – Como foi recebida, na sua casa, a notícia de que a senhora queria cursar Medicina?

 

Elisa Noronha – Meu pai não era formado, mas era de cabeça muito boa, de modo que aceitou muito bem. Ele me perguntou se eu sabia o que queria fazer. E eu “Sei muito bem.”. E ele “Então, vai, filha, com a minha benção”. E fui muito bem-recebida na família. Os meus colegas me receberam muito bem. Entre nós, não havia homem ou mulher – nós éramos colegas.

 

José Wille – Entre as outras mulheres, como viam esse seu caminho?

 

Elisa Noronha – “Ah, você é muito corajosa, Elisa! Depois, vai estudar, estudar para não fazer nada!”. E eu respondia “Por que não fazer, se eu vou fazer o curso igual a todos? A mesma coisa que vocês fizerem, eu farei!”.

 

José Wille – As pessoas achavam que a senhora não teria espaço para exercer a profissão médica?

 

Elisa Noronha – No entanto, fui professora de Matemática depois. A minha especialidade não é a Medicina, é a Matemática. Eu dava muita aula de Matemática.

 

José Wille – Há o lado duro da Medicina, como a  dissecação de cadáveres. Como foi esse primeiro contato?

 

Elisa Noronha – Não encontrei dificuldade nenhuma. Eu via no cadáver um ser que foi um ser humano. Tudo o que o ser humano tinha, ele tinha. Só que o ser humano é um elemento nobre. E o defunto não é. Mas a gente não tinha nojo. Meus colegas faziam brincadeiras. Um dia, pus a mão no bolso do avental com que a gente assistia às aulas e encontrei o quê? Um sexo masculino (risos)! Aí, eu falei “Olha, muito obrigada, viu, gente!”. Eles pensaram que eu ia ficar zangada, mas não fiquei.

 

José Wille – A senhora não se constrangia com nada e enfrentava bem essas situações?

 

Elisa Noronha – O que eles aguentavam, eu aguentava. Eu não iria tirar um curso igual ao deles? E tirei mesmo!

 

José Wille – Essa descontração – a que a senhora a atribui, em uma época em que a mulher era muito recatada? À sua origem, ao fato de seu pai ser italiano?

 

Elisa Noronha – Eu acho que isso. Papai conversava muito com a gente. Ele não era formado, mas era um homem inteligente. Até hoje, digo para minha filha que ele era um homem inteligente, pois o que não sabia responder, ele ia ler a respeito. Ele não dizia que não sabia. Dizia “Amanhã, eu te conto”. E ele ia ler, procurar.

 

José Wille – Como foi a sua opção pela ginecologia?

 

Elisa Noronha – Em 1935, fui para São Paulo e fiz especialização na maternidade do professor Briquet, que fica em frente ao Hospital da Consolação. Havia muito material humano e aprendi muito, porque Medicina se aprende assim. Aprendi muito e, quando cheguei a Curitiba, não encontrei dificuldades e montei o meu consultório. E já tive uma boa clínica. E tão boa por quê? Porque fui professora de todo mundo! Então, achavam que, por eu ser professora de Matemática, também deveria conhecer Medicina.

 

José Wille – A senhora não teve problemas para encontrar  pacientes, na década de 30?

 

Elisa Noronha – Muitas vezes, o marido acompanhava a mulher ao consultório. Então, eu falava “Que bobagem! Quer assistir ao exame, entre. Mas não há necessidade. É um exame de mulher para mulher”. E isso liberou a mulher. Depois, já não acompanhavam a esposa ao consultório.

 

José Wille – No curso de Medicina, como era a rotina? Por exemplo, os horários eram desencontrados, as aulas eram de acordo com a possibilidade de o professor atender os alunos.

 

Elisa Noronha – De o professor atender o aluno e isso causava dificuldades. Se a gente tiver um curso organizado – das oito às onze, por exemplo – vai bem. Mas uma aula de manhã, uma aula à tarde, outra à noite… Naquele tempo, para a mulher, para uma moça como eu, havia certo preconceito de sair à noite na rua sozinha, mas eu enfrentei. Enfrentei, pois papai já era de idade para me acompanhar. E deu tudo certo.

 

José Wille – Os estudantes já faltavam aula naquela época? Dizem que o local preferido para isto era a Praça Santos Andrade, em frente.

 

Elisa Noronha – O local era a praça. Iam fumar, iam conversar, dar gargalhada. Estudante gosta de dar gargalhada. De modo que iam lá na praça e eu, às vezes, os acompanhava.

 

José Wille – E a mobilização estudantil? O estudante já se organizava, já fazia passeatas naquela época?

 

Elisa Noronha – Fazia, geralmente de crítica. Crítica a um professor, um bobão. Teve um, que vou contar, mas não vou dizer o nome. Havia um colega nosso que não tinha o hábito de dar risada, dar gargalhada. Mas ele tinha um sorriso sempre na boca. O danado era “pretinho” e foi um bom médico. Então, o professor contou qualquer coisa, virou-se e encontrou aquele sorriso entreaberto. Chamou-o de negro e não sei o quê. A turma se levantou e saiu da aula do professor em protesto. Fomos visitar professor por professor, para que eles usassem a razão. E o professor perdeu o cargo. Olha o valor do estudante quando ele sabe aproveitar!

 

José Wille – Como a senhora nasceu em Curitiba, em 1910, deve se recordar ainda de como era a cidade nas décadas de 20 e 30.

 

Elisa Noronha – Progrediu demais. Tanto que me dá saudades de Curitiba, daquela Curitiba. Hoje, a gente se sente meio assim esquerda de sair à noite. Às vezes, tenho que ver um doente e exijo a presença de uma pessoa da família para ir comigo, pois tenho medo. Pode ser um chamado falso. Naquele tempo, não havia isto. Era uma cidade boa de se viver, humana de se viver. Fazíamos nossas farras de estudante, com muita gargalhada, muito riso, muita anedota. Uma beleza de se viver! Curitiba, hoje, não é sombra do que foi.

 

José Wille – As pessoas ainda se conheciam?

 

Elisa Noronha – Os estudantes, amigos, parentes e vizinhos. Vizinho era amigo da gente.

 

José Wille – Curitiba já tinha essa imagem de Cidade Universitária? Era um local que os estudantes procuravam?

 

Elisa Noronha – Já. A maioria dos estudantes daquele tempo era paulista, inclusive o meu marido. Ele veio estudar aqui e casamos. Veio para estudar aqui. A universidade tinha fama de boa escola. Os doentes procuravam os alunos e os professores da escola. A escola gozava de muito boa fama. Não tanto aqui, mas lá em São Paulo. “Por que você veio para Curitiba?” – “Porque todo mundo gosta, todo mundo conta que é uma boa escola e porque tem doente para todos os estudantes”.

 

José Wille – A universidade era paga, naquela época?

 

Elisa Noronha – Era paga, mas era uma taxa mínima. Não lembro a taxa, mas era mínima.

 

José Wille – E o namoro, naquela época, como era?

 

Elisa Noronha – Eu namorei meu colega e casei com ele. Os costumes entre namorados, por exemplo, quem faz o costume é a moça, geralmente. Eu sempre vivi muito bem com os meus colegas. Eles iam jantar na minha casa – “Como é, Elisa, dá para ir jantar na sua casa? A comida lá na pensão está fraca” – “Pode ir.”. Em casa de italiano, é fácil pôr mais um prato, não é? Então, eram costumes familiares.

 

José Wille – Qual era a diversão dos estudantes em Curitiba? O cinema? O que era mais procurado?

 

Elisa Noronha – Os bailes polaqueiros!

 

José Wille – O que eram bailes polaqueiros?

 

Elisa Noronha – Era preciso que tivesse um deles aqui para que contassem. Dizem que eram os bailes mais divertidos que tinha. Todos os sábados, eles iam a bailes polaqueiros. Eles me convidavam e eu dizia “Não vou, porque eu não sou disso!”. E nunca fui mesmo. Eles aproveitavam. Vinham para cá estudantes de São Paulo, do Rio. E foram alunos que se destacaram nos estudos e na vida profissional também. Muitos são professores em São Paulo. A maioria da minha turma era paulista e foram bons alunos, bons amigos, bons colegas.

 

José Wille – A senhora, ao se formar e casar, foi para o interior do Paraná, para Rolândia, que estava começando – era apenas mata fechada, no Norte do Paraná. A senhora aceitou bem nova essa situação?

 

Elisa Noronha – Aceitei, sim! Rolândia, uma cidade alemã… E eu falava alemão, como, aliás, falo, leio e escrevo, porque fui educada em colégio alemão, o Divina Providência, e lá aprendi um bom alemão. Até hoje, pratico no consultório, com uns alemães que vão lá. Eles gostam de falar alemão e eu gosto também de responder. E me ajudou muito isso na colônia alemã, não pela minha medicina, mas por eu falar alemão.

 

José Wille – Como era, em 1939, a cidade de Rolândia? Mata fechada, doenças e epidemias?

 

Elisa Noronha – Teve uma epidemia de tifo. Então, Leônidas – meu marido – e eu fomos estudar juntos  a causa da epidemia. Abria-se uma fossa para fazer um poço, não dava água, então seria uma fossa e aí vinham as fezes do “tifento”, que se espalhavam pela cidade. Então, fizemos a parte de evitar o tifo, de acabar com o tifo em Rolândia.

 

José Wille – Foi um trabalho principalmente de informação?

 

Elisa Noronha – E essa glória coube mais ao Leônidas. Então, com o tifo, Rolândia era inabitável. O alemão tinha medo de vir da Alemanha para lá por causa do tifo. Acabamos com o tifo em Rolândia.

 

José Wille – Em 1939, quando a senhora chegou a Rolândia, a mata estava sendo derrubada, e começava o plantio do café. E como eram esses pacientes que procuravam a senhora? Eram pessoas sem condições de pagar um atendimento médico, exigindo um trabalho social de sua parte?

 

Elisa Noronha – Fazíamos social de momento. Ele se comprometia – “Olha, doutora, não tenho dinheiro, mas, na próxima colheita, eu venho pagar a senhora”. E acontece que, na próxima colheita, eu já estava morando de volta em Curitiba. O senhor acredita que eles vinham até Curitiba para me pagar uma consultinha? Eles não esqueciam! Como é interessante a gente ver a dignidade da pessoa da classe humilde! Não ficavam devendo, não ficavam sem pagar uma consulta.

 

José Wille – E, muitas vezes, levavam um leitãozinho para a médica?

 

Elisa Noronha – Levavam! “Doutora, a senhora quer que eu venha preparar o leitão para a senhora?” – “Ah, quero sim!”. Então, vinham, raspavam o pelo do leitão, o abriam e o davam preparadinho. Cortavam-no em fatias e me davam. “Doutora, eu trouxe um milhozinho para a senhora”. – “Então, despeje ali no canto da sala”, porque não tinha lugar para pôr tanta coisa. O milho era para fazer a pamonha. E eu dizia “Escuta, não sei fazer pamonha. Sou de cidade, gosto de comer pamonha, mas não sei fazê-la”.  – “Ah, a minha patroa vem fazer para a senhora!”. Diziam “Elisa, como você saiu de Curitiba, com uma clientela boa, interessante, e se adaptou lá?”. – “Porque eu soube me adaptar a eles!”.

 

José Wille – Como os médicos eram raros, a senhora tinha que atender a uma grande região?

 

Elisa Noronha – Mas grande mesmo! Eu atendia a Rolândia, Cambé, Apucarana, Arapongas, até a barranca do rio. Fazia uma viagem de carroça para ir atender lá.

 

José Wille – Essas pessoas do interior geralmente procuram um médico quando a situação já é bastante grave. E aí, o que fazer?

 

Elisa Noronha – Eu sempre conto para minhas filhas esse caso, quando me chamaram para atender uma mulher com uma hemorragia tremenda pós-parto. Havia a retenção da placenta e, enquanto não sair a placenta, o sangue não para. Cheguei lá, lavei-a direitinho, lavei a mão com bastante sabão de cozinha, retirei a placenta e estancou a hemorragia. Foi um caso em que a gente salvou a mulher e, com a graça de Deus, chegamos em tempo. E casos assim eram comuns.

 

José Wille – Como atender a esta população, sem recursos, sem equipamentos e até com poucos medicamentos na farmácia da cidade?

 

Elisa Noronha – Quando fomos para lá, visitamos a farmácia, onde nos disseram “Aqui grassa uma epidemia tifoide”. Então, explicamos por que acontecia: abriam um poço, não dava água e passava a ser a privada. Bastava um com tifo para passar para toda a turma lá. O que faltava era a educação do povo – e isso a gente fez. Eu acho que o trabalho maior que fizemos lá foi educar o povo com medidas de higiene. Contar de onde vinha o tifo! Eu acho que, no Brasil, nessas cidades do interior atrasadas, o que tem que se fazer não é só dar o médico, é dar a lição, ensinar o por quê. A gente acabou com o tifo em Rolândia dessa forma.

 

José Wille – Muitas vezes, há mais a necessidade da medicina preventiva…

 

Elisa Noronha – …do que curativa. A preventiva é mais fácil!

 

José Wille –  Ficando no Norte do Paraná, de 1939 até 1954, a senhora acompanhou a ocupação da terra.

 

Elisa Noronha – Pelos alemães e pelos polacos. Havia bastantes japoneses naquela região também.

 

José Wille – E paulistas e mineiros, que vieram para o Norte do Paraná?

 

Elisa Noronha – Fizeram fortuna lá. Trabalharam, é lógico! Então, aquela colônia cresceu. Hoje, as maiores fortunas do Norte do Paraná pertencem aos primeiros colonos. Eles ocuparam, trabalharam, plantaram e colheram. Hoje, os filhos estudam em faculdades daqui. De vez em quando, vão lá em casa me visitar – “A senhora é a doutora Elisa? Meu pai falava muito na senhora!” – “Bem ou mal?” – “Ah, bem, doutora!”. Foi um tempo feliz da minha vida e a gente via progresso.

 

José Wille – O que fez a senhora e seu marido pensarem em retornar a Curitiba em 1954, depois desse longo tempo no interior?

 

Elisa Noronha – Estávamos com 2 filhas e queríamos dar-lhes uma instrução melhor. Uma era a Brigidinha, que faleceu em um acidente de automóvel, e outra, a Cida. O menino, o Agostinho, nasceu aqui em Curitiba. De modo que foi isso: dar uma boa instrução, e Curitiba era um outro ambiente.

 

José Wille – A senhora se readaptou facilmente a Curitiba?

 

Elisa Noronha – Sim, porque a antiga clientela voltou. E o que faz a vida da gente é a nossa clientela. Quinze anos de afastamento e os clientes voltaram! Deixei lembranças, então voltaram.

 

José Wille – Quando a senhora voltou a Curitiba, criou o Hospital Santa Brígida. Como surgiu a idéia?

 

Elisa Noronha – Porque a gente dizia “Esse é um caso de hospital para o doente”. E me respondiam “Ah, doutora, arranja um hospital bom para a gente!”. Nasceu, assim, de me pedirem para arranjar um hospital. Por isso, construímos o Santa Brígida.

 

José Wille – A senhora montou o hospital de acordo com o que imaginava que deveria ser um procedimento hospitalar?

 

Elisa Noronha – Sim. E, graças a Deus, ele continua sendo mais ou menos como eu queria que fosse. Nem tudo é perfeito… Em um hospital, a gente lida com médico, lida com enfermagem e tal, e não é bem como a gente sonha. Mas sonho é sonho; realizar, a gente realiza uma parte.

 

José Wille – Antigamente, o trabalho do médico era de mais proximidade, havia a figura do médico da família. Hoje há mais distância. O que a senhora acha disso?

 

Elisa Noronha – Acho que o médico que tem tino e pensa um pouco torna-se amigo da família. É muito comum, no meu consultório, nos dias de hoje, ir uma velha levando uma menina de dez, doze anos pela mão. “Doutora, essa é a minha bisneta. A senhora me tratou quando eu tinha a idade dela. Agora, eu a trago para a senhora e espero que a senhora trate-a bem”. E eu digo “Eu sou sempre a mesma médica, pode trazer”. E, graças a Deus, eu tenho uma clientela muito boa. O Santa Brígida é muito bom de status.

 

José Wille – O afastamento entre médico e paciente ao longo do tempo – por que a senhora acha que aconteceu?

 

Elisa Noronha – Acho que por causa do médico mesmo, de seu comportamento. Há médicos que atraem. O senhor, por exemplo: eu podia ficar conversando até amanhã – não vou ficar, mas podia. Porque atrai, dá atenção. Pelos olhos, sei que o senhor está entendendo o que quero transmitir. E assim, também, há médicos que transmitem confiança e hospitais que transmitem confiança. Quando isso não acontece com o médico, eu o chamo para conversar – “Você dá a saúde, mas eles têm que ter confiança em você. Mude um pouco o seu modo de tratar o paciente”.

 

José Wille – A senhora acha que há mais mercantilismo hoje?

 

Elisa Noronha – Não tanto isso. É que o médico quer se colocar num plano superior ao do doente. E, para ele atingir o fundo do doente, tem que se tornar um pouco o doente, entender, ter paciência. Como o senhor está tendo, sentado aí, ouvindo umas baboseiras. Mas tem paciência e, por isso, o senhor vence na profissão.

 

José Wille – A senhora acredita que deve existir a visão da profissão como uma missão, no caso do médico, principalmente?

 

Elisa Noronha – Para mim, é. Ela é missão e profissão. No primeiro plano, missão; depois, profissão. O senhor tira o ganho dali. Então, é uma profissão.

 

José Wille – A senhora acha que o médico deve dizer a verdade quando existe uma má notícia? Como deve ser o comportamento do médico? Muita gente acha que a psicologia está um pouco esquecida, às vezes deixando o paciente apavorado.

 

Elisa Noronha – Apavorado até de morrer! Tem medo, sai dali e vai morrer em casa. Esperança nunca se tira de quem quer que seja. Por mais idiota que seja a esperança, ela é uma fonte de amor à vida. Triste daquele que perde a esperança na vida. Eu sonho tanto…

 

José Wille – A senhora acredita que o pessimismo, o estado de espírito, pode ser um fator para provocar doenças?

 

Elisa Noronha – O senhor desconfia que fulano tem um câncer no fígado. O senhor começa a conversar e toca no assunto. E o doente sai apavorado –  “O médico descreveu o que eu tenho, então eu tenho um câncer no fígado!”. Então, quando eles perguntam “É perigoso, é fatal?”, a gente responde “É, mas o senhor não tem, não”. A mentira é necessária na vida. Até uma declaração de amor é preciso adoçar.

 

José Wille – Com o próprio medo da doença, a pessoa pode provocar uma doença?

 

Elisa Noronha – Pode. Mas, você sabendo que pode, não vai dar chance. Eu digo “Não é o seu caso, filho…”. Pronto, tira! O doente sempre tem confiança no seu médico. Feliz o médico que inspira confiança ao seu paciente.

 

José Wille – Muitas vezes, parece que o paciente quer mais a atenção do médico que qualquer outra coisa.

 

Elisa Noronha – Ele quer isso, a atenção do médico. E se ele atende o paciente fumando ou pensando em outra coisa, o doente não é bobo! Se você não está prestando atenção, o doente está sabendo.

 

José Wille – A senhora desenvolveu um curso, “O Parto sem Medo”. O que a levou a pensar nisso? É possível um parto sem medo mesmo?

 

Elisa Noronha – Vá assistir! Eu lhe dou entrada lá no Santa Brígida. Dou umas cinco aulas, uma aula por semana. Então, um pouco é a psique que se inspira, para ver o lado bonito do parto. Parto! Só quem dá a vida é Deus! O médico que assiste o parto está ajudando a receber esta vida. E a coisa interessante: a aula é para as mulheres grávidas e, no entanto, há muitos homens que querem ver.

 

José Wille – O curso é aberto também para homens que querem participar?

 

Elisa Noronha – Ah, sim, eu gosto, porque a gente faz ver o papel importante do marido no parto. O que custa dar uma mãozinha para a mulher, fazer um agrado naquela hora? É lógico: ela esquece um pouco da dor.

 

José Wille – A senhora acha que é importante o acompanhamento do marido?

 

Elisa Noronha – Eu acho e faço questão.

 

José Wille – E os maridos que têm medo do parto?

 

Elisa Noronha – Perdem. Eu conto a história de um que foi assistir ao parto. E homem é curioso, não é? Então, estava na expulsão. E expulsão de um primeiro filho é um pouco demorada. A cabecinha vem e demora um pouco. E vem mais um pouco, e mais um pouco, e acaba saindo. Dessa forma, eu faço questão que eles assistam ao parto. Parto não é brincadeira, mas tem uma dádiva muito grande, que é o filho.

 

José Wille – Há casos de alguns maridos que ficam muito impressionados?

 

Elisa Noronha – Já tive maridos que caíram. Caiu, fica caído. A mulher não caiu para ter o filho, teve valentia. E a sua, onde está? Ele tem que acordar deitado e garanto que um conta para o outro e nenhum mais vai desmaiar.

 

José Wille – Dizem que o homem resiste menos às dores do que a mulher. A senhora concorda?

 

Elisa Noronha – O homem em si é mais chorão. Eles dizem para a gente “A mulher é corajosa! Eu não teria coragem…”. Eles assistem ao parto no curso e, depois, eu brinco com eles – “Que tal, gostaram?”. A mulher fica vermelha e tem que fazer força e tal. Às vezes, solta a língua e chama o marido de santo para baixo.

 

José Wille – Doutora Elisa, o trabalho de médico sempre foi de muita psicologia também no atendimento, e muito mais ainda nessas épocas em que a senhora trabalhou. Existe muito desgaste emocional quando o médico acaba se envolvendo nas situações que enfrenta?

 

Elisa Noronha – Muita! Um colega meu, pediatra do Santa Brígida, tinha perdido o filho, estava inconsolável e eu fui conversar com ele. E ele disse “Elisa, me dê um pouco da sua energia”. E eu respondi “Não, eu não posso dar da minha. Faça nascer a sua, que tem dentro de você. Não foi só o seu filho que morreu. Veja quantos morrem por dia!”. Então, tapeei o homem e ele ficou meu amigo. O coitado sofreu muito, mas superou.

 

José Wille –  Mas muitos médicos sofrem junto com o paciente, pois acabavam se envolvendo também.

 

Elisa Noronha – É lógico! Aquelas que fazem conosco nove meses de pré-natal e, depois, quando vamos assistir o seu parto e percebemos que a criança não está viva, é um trauma para a gente. Mas a gente supera.

 

José Wille – Outra situação difícil é quando as mães não querem o filho. Como a senhora  enfrentava situações assim?

 

Elisa Noronha – Enfrento até hoje. Mãe solteira me dá um serviço danado, mas eu consigo. “Você não quer, me dá que eu crio. Com todo amor, com todas as condições que eu posso criar. Pode me dar!”. É a arma que eu tenho. E ninguém dá filho!

 

José Wille – E os casos de gravidez na adolescência em que a família não quer que a criança nasça?

 

Elisa Noronha – Em uma ocasião, eu atendia uma paciente e a mãe dela me disse “Ela era tão boa filha, doutora! Depois da gravidez, mudou da noite para o dia…” – “Não foi ela que mudou, foi a senhora que não aceitou sua filha!” – “Como a senhora sabe?” –  “Eu sei por que lido com uma porção de pessoas grávidas.”. Então, primeiro, eu explico para a mãe da criança o que é um nenê. Depois, chamo o pai e a mãe, os avós da criança, e prego a moral “Vocês não tiveram os filhos que vocês quiseram, fruto do amor de vocês? O dela é fruto do amor dela!”. Prego uma lição, dou uma aula de moral e, às vezes, acabo sendo até madrinha do nenê.

 

José Wille – E, em grande parte dos casos, até salvando aquela criança, que poderia não ter nascido?

 

Elisa Noronha – Poderia não ter nascido. E sei quando eles aceitam, porque saem, me abraçam, choram no meu ombro. E eu penso “Aceitaram o conselho”. E, depois, levam a criança para eu ver.  E eu acho linda a criança – inteligente, com todos os predicados futuros para estimular pais e avós.

 

José Wille – E nas situações em que há preferência por homem ou mulher, e não nasce o que estava sendo esperando?

 

Elisa Noronha – Nessa situação, tem que acabar aceitando. Pergunto para a mãe “Por que você queria isso? Lá no íntimo, faz diferença? Olha, eu arranjo um médico lá do Santa Brígida que enxerta e da tua menina faz um menino. Quer? Fica bom, mas fica meio a meio”. Acabamos rindo e ela aceita. É preciso saber viver.

 

José Wille – Esse é um trabalho de psicologia, mas também de informação, a respeito até mesmo do ambiente de casa, entre os pais, para a formação da criança, inclusive durante a gestação?

 

Elisa Noronha – Influi bastante. Em um caso, por exemplo, eu atendi uma paciente grávida e ela estava rejeitando a criança. Eu fui mais fundo e perguntei como ela foi recebida pelos pais. Ela tinha sido mal-recebida e, então, criou aquele trauma. Eu lhe disse “Se quer fazer o que teus pais fizeram com você, então me deixe a criança, que eu crio. Eu tenho uma maternidade, ponho-a no berçário…” Eu já prometi para tantos.

 

José Wille – O que a senhora acha do parto atual, do grande número de cesarianas que existe no Brasil?

 

Elisa Noronha – Eu sou contra. A mulher tem um sistema genital, que é para dar passagem para o nenê. Quando não dá, o médico-parteiro, o obstetra, conhece. Fazendo o exame bem-feito, ele sabe se a criança pode ou não nascer pela via vaginal. Se não pode, vamos para a cesariana. Mas a preferência é pelo parto natural.

 

José Wille – A senhora acha que influem o medo da mãe e também o interesse do médico, por ser mais fácil um nascimento com hora marcada e, às vezes, por ser mais rentável?

 

Elisa Noronha – Depende do médico. Aquele que é médico mesmo não faz isso. Um filho é uma definição do casal. Ambos devem querer muito bem a seus filhos.

 

José Wille – Antigamente, as mães é que passavam os conselhos e ensinavam as filhas.

 

Elisa Noronha – Acho que a mãe e o pai é que devem dar assistência moral, porque esta assistência moral é 80% melhor do que a assistência na hora do parto, que é o médico que dá, um profissional, que sabe o que diz e sabe o que faz. Eu dou aula, gosto de dar aulas. Dou cinco aulas e preparo a turma para o parto sem medo. Antigamente, a gente dizia “parto sem dor” e eu pus a balela no chão. Não existe! Imagine, por um orifício assim, passar uma criança de quatro quilos! Alguma coisa a pessoa sente. Sou mãe de quatro filhos e sei que sente. Preparo para que tenham um parto sem medo e que, então, possam ajudar.

 

José Wille – E a utilização de analgésicos?

 

Elisa Noronha – Só quando é necessário mesmo, quando a dor é demais.

 

José Wille – A senhora acha que pode ser prejudicial a utilização dos analgésicos no momento do parto?

 

Elisa Noronha – Acho. Por que a dor vem de onde? Da força que o útero faz. Então, se o útero deixa de fazer força devido ao analgésico, estará prejudicando. Quanto mais natural – a dor sendo suportável – é melhor.

 

José Wille – A tendência hoje é de se formarem famílias pequenas. Como a senhora acompanha isso no consultório?

 

Elisa Noronha – As famílias maiores são as mais felizes. Estude uns casos conhecidos seus e você vai ver. Eles são mais felizes! Os irmãos se dão bem, pai e mãe se dão bem, porque eles têm que dar o exemplo a todos os filhos. Eu gosto. Tive 4 filhos.

 

José Wille – E as crendices populares, por exemplo, de que a mulher que teve um filho não pode tomar banho.E uma série de outras histórias.

 

Elisa Noronha – Tudo isso é bobagem! Eu dou aula e acabo com tudo isso. E o pessoal gosta da minha aula. Eu sou italiana, e filho de italiano fala muito. Gostam da minha aula e os homens querem ir assisti-la também. E eu os recepciono – “Bem-vindos, papais!”.

 

José Wille – A senhora, com a idade de 86 anos, continua saindo para consultas em casa de pacientes?

 

Elisa Noronha – Raramente. Mas antigos clientes pedem “por favor” e eu vou. Não me custa…

 

José Wille – O que lhe ajuda mais nisso? O fato de gostar tanto da profissão?

 

Elisa Noronha – De gostar, sim. E eu lhe digo mais: se houvesse outra encarnação e eu voltasse, seria médica de novo.

 

José Wille – Faria a mesma opção novamente?

 

Elisa Noronha – Novamente!

 

José Wille – Que receita a senhora deixaria para este otimismo e disposição para o trabalho?

 

Elisa Noronha – Isso é muito interno. Vem de dentro da gente. Às vezes, a gente está vendo que não é aquilo que vamos falar, mas você fala com tal otimismo que acaba convencendo. Quando eu quero convencer uma gravidez, eu lhe garanto que convenço!

 

José Wille – Finalizando, o que significou esse esforço todo em sua vida?

 

Elisa Noronha – Às minhas aulas, ninguém falta – e, ainda por cima, o marido vai junto! Acho engraçadinho os casais de mãos dadas e assistindo à aula. Lá no íntimo, eu estou dando risada. Sim, senhor! Eles largam casa, largam trabalho, o que estão fazendo… Mas eles agradecem, eles gostam…

 

elisa checha noronha JWS

 

 

 

 

 

 

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