Especial: Os 101 anos do falecido Chacrinha
EBC – “Quem não se comunica se trumbica!”, já diria Abelardo Barbosa, o saudoso Chacrinha. Conhecido como o Velho Guerreiro, graças à homenagem feita por Gilberto Gil na canção Aquele Abraço, o apresentador começou a ficar conhecido com um programa de músicas de carnaval que lançou em 1943 na Rádio Fluminense: Rei Momo na Chacrinha, de onde veio a alcunha que o tornaria conhecido em todo o país.
Para marcar os 101 anos de nascimento de Chacrinha, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) reúne num especial relíquias do artista: entrevistas concedidas ao jornalista e radialista Hilton Abi-Rihan, encontradas no acervo da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Nos áudios, deparamos com um Abelardo Barbosa que foge à imagem alegre e brincalhona que marcaram o personagem no rádio e na televisão. Em 1980, um Chacrinha irritado solta um palavrão e deixa o estúdio durante um programa em que discutia o jabá (pagamento feito pelas gravadoras para que toquem somente as músicas determinadas). No segundo momento, num programa de carnaval gravado em 1984, ele fala sobre um problema de saúde que o afetava na época: a depressão.
Mesmo nessas situações, é possível também reconhecer a figura do Chacrinha como o ícone de humor perspicaz que se tornou conhecido país afora e foi considerado o maior comunicador do Brasil. Outros momentos de sua trajetória são lembrados na entrevista com Denilson Monteiro, autor de Chacrinha, uma Biografia.
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Chacrinha manda bronca nos estúdios da Nacional
Em 20 de junho de 1980, Abelardo Barbosa foi aos estúdios da Rádio Nacional – então localizados na Praça Mauá, no Rio de Janeiro – para participar de uma edição do Programa Nacional 80. No dia anterior, o cantor Oswaldo Nunes havia acusado Chacrinha ao vivo no rádio por cobrar aos músicos para se apresentar em seu programa. Chacrinha fazia sua habitual “ronda” pelas emissoras e ouviu as acusações de Oswaldo. Irritado, ligou para a rádio e pediu para responder ao que estava sendo dito sobre ele.
No dia seguinte, ele foi pessoalmente ao programa apresentado por Hilton Abi-Rihan e Washington Rodrigues. Oswaldo também estava presente. A conversa fluia normalmente até que o cantor afirmou, enfático: “Tem jabá, o Chacrinha tem jabá”. Foi então que o comunicador ameaçou deixar o estúdio: “Eu não vou discutir com esse rapaz”. A solução foi dada pelos famosos comerciais. Na volta do programa, ficou combinado que Chacrinha falaria por mais três minutos e, em seguida, a palavra seria concedida a Oswaldo. Quando o programa se aproximava dos 30 minutos, Oswaldo dirigiu uma pergunta para Chacrinha: “O senhor só leva uma pessoa no seu programa se for de graça, isso não é uma maneira de explorar o artista?”. Chacrinha respondeu que isso só acontecia quando era vontade do artista, ao que Nunes retrucou: “você não paga ninguém, Chacrinha”.
O clima esquentou e os dois começaram uma intensa discussão, que cresceu até o momento em que o Velho Guerreiro soltou um sonoro palavrão. Novamente os comerciais entraram em cena. Na volta do programa, Chacrinha já não estava mais no estúdio e Washington Rodrigues pediu desculpas aos ouvintes pelo ocorrido.
Depressão
Em 1984, Chacrinha voltou aos estúdios na Rádio Nacional para conversar com Hilton Abi-Rihan em um programa especial de carnaval. Ao ser questionado se passava por situações de raiva e angústia, Abelardo Barbosa afirmou que estava quase concluindo um tratamento de depressão que havia durado seis meses. “Quando ela está no auge mesmo, você vê tudo preto, é tudo preto. Você não quer ver ninguém, não quer saber de ninguém, dorme três dias seguidos sem parar”, contou.
Em seguida, Chacrinha revelou que era a primeira vez que tratava desse tema publicamente. “Agora, eu faço uma força tremenda. Tô falando isso aqui, é a primeira vez que eu tô falando isso aqui”, disse.
O início no rádio
Natural de Surubim, no Agreste de Pernambuco, Abelardo Barbosa teve o primeiro contato com rádio em 1937, como estudante de medicina, quando realizou uma palestra sobre alcoolismo na rádio Clube de Pernambuco. “Ele foi fazer uma palestra sobre alcoolismo”, conta Monteiro. “Gostaram da voz dele e contrataram ele pra ser locutor”, acrescentou.
Como baterista do grupo de jazz Bando Acadêmico, ele entrou com os músicos em um navio rumo à Alemanha, em 1939, mas com o início da Segunda Guerra Mundial teve de desembarcar no Rio de Janeiro, onde se tornou locutor da Rádio Tupi. Na rádio Clube de Niterói, comandou o programa de carnaval Rei Momo na Chacrinha, que acabou se estendendo para depois da festividade.
“Ele fazia aquele programa com músicas de carnaval, as marchinhas, fazia o programa com a sonoplastia e fingia que estava fazendo umas entrevistas. E isso revolucionou, ele ficou conhecido porque falava um monte de coisas absurdas. Na época, ele era conhecido até como ‘o louco de Niterói'”, conta Denilson Monteiro.
Rádio Nacional
Ao ser questionado por Abi-Rihan sobre um momento marcante de sua vida, Chacrinha falou de sua rápida passagem pela Rádio Nacional, em 1945, onde apresentava os programas Noite Dançante, aos sábados, e Tarde Dançante Melhoral, aos domingos, quando não havia futebol. “Uma coisa muito importante da minha vida aconteceu aqui na Nacional, quando eu trabalhava na Rádio Guanabara e ela era dirigida pela Rádio Nacional. A Rádio Guanabara foi entregue ao seu dono e quem ficou na Guanabara foi despedido. Então o senhor Vitor Costa mandou me chamar e perguntou se eu queria continuar na Nacional ou se eu queria ficar na Guanabara”, disse. “Naquela época [isso] foi muito importante, porque marcou a minha vida como profissional. Foi a primeira vez que eu me senti atraído por duas emissoras”, acrescentou Chacrinha.
Do rádio para a televisão
Na década de 50, com o personagem já incorporado, Aberlardo Barbosa lançou o Cassino do Chacrinha. O programa passou do rádio para a televisão e manteve seu sucesso até a década de 1980. Em seus programas de auditório na televisão, foram revelados diversos nomes da música brasileira como Roberto Carlos e Raul Seixas. “O jeito de falar e os jargões surgiram no rádio e ele trouxe do rádio pra TV. Fantasias, todo esse negócio começa na Tupi, mas vai se desenvolvendo ao longo da carreira. Ele nunca parou de inventar alguma coisa nova”, conta Denilson Monteiro.
Chacrinha passava os dias na piscina de sua casa, com um rádio ao lado para saber quais artistas ele chamaria para o seu programa, conta o biógrafo. “Ele pensava 24 horas no programa. Tudo pra ele era o programa, e a família também tinha que pensar no programa. A esposa dele ficava em casa anotando o que a concorrência estava fazendo”, diz Monteiro. Na entrevista de 1984 para a Rádio Nacional, Chacrinha conta sobre a importância dos shows que fazia país afora para descobrir novos talentos e fala da preocupação em apresentar na televisão aquilo que o público gostava.
“Quando eu sinto que a música é boa, nós não temos radicalismo: foi bom toca, foi bom apresenta. Nós procuramos diante de nossas fracas e modestas possibilidades dar ao público aquilo que realmente o público gosta, não o que nós gostamos. Tem que dar o que a gente sente que o público quer, não o que a gente quer. O que a gente quer a gente ouve em casa, não é verdade?”, Chacrinha
Tropicália abraça Chacrinha
Apesar de muito popular, o programa do Chacrinha era mal visto pela classe média da época. “Era aquela história de ‘passei pelo quarto da empregada e aí a televisão tava ligada e dei uma espiada’. Era assim que a classe média sempre preconceituosa se comportava com relação ao Chacrinha. Era um prazer culposo assistir ao Chacrinha”, conta Monteiro. Essa perspectiva começou a mudar no final da década de 1960. Em uma visita ao Brasil, o sociólogo francês Edgar Morin classificou Chacrinha de “um fenômeno de comunicação de massas só comparável a [John F.] Kennedy e [Charles] De Gaulle”.
Chacrinha também teve seu reconhecimento dentro da classe artística do país por parte do movimento tropicalista. O escritor José Agrippino de Paula, autor do livro Panamérica, uma das obras que influenciaram o movimento tropicalista, já havia dito a Caetano: “Chacrinha é a personalidade teatral mais importante do Brasil”. Em abril de 1968, ápice do movimento tropicalista, Caetano cantou Tropicália na Noite da Banana, edição especial do programa Discoteca do Chacrinha, dedicada aos tropicalistas. Caetano, Gil e os Mutantes passaram a ser atração frequente no programa. O movimento abraçou Chacrinha como um ícone da cultura pop brasileira, que por sua vez dizia sempre ter sido tropicalista. Foi de Gilberto Gil, antes de deixar o país após ser preso pelos militares, que Chacrinha ganhou a principal homenagem, na letra da canção Aquele Abraço.
Chacrinha continua balançando a pança
E buzinando a moça e comandando a massa
E continua dando as ordens no terreiro
Alô, alô, seu Chacrinha – velho guerreiro
Alô, alô, Terezinha, Rio de Janeiro
Alô, alô, seu Chacrinha – velho palhaço
Alô, alô, Terezinha – aquele abraço!
“Isso ajudou ele a sobreviver, atravessar o tempo, passar de um século pra outro: graças a essa canção do Gil. Isso pra ele foi muito importante”, aponta Monteiro. “Velho Guerreiro é uma homenagem que prestaram a mim e eu naturalmente aceitei de bom grado”, afirma Chacrinha na entrevista de 1984 para a Rádio Nacional.
Censura
Durante a Ditadura Militar (1964-1985), Chacrinha enfrentou problemas com a censura. Seu programa tinha sempre a presença de algum censor e a principal questão dos militares era o tamanho das roupas usadas pelas dançarinas do programa. Em uma ocasião, Chacrinha chegou a ser conduzido para a sede da Polícia Federal, na rua Xavier de Toledo, onde passou cinco horas prestando depoimento. “Ele foi muito perseguido durante a ditadura, pela censura. No Jornal do Brasil, dom Marcos Barbosa escrevia e o atacava semanalmente, chegava a ponto até de sugerir que Chacrinha fosse tirado do ar. A censura estava lá. Tinham atrações que eles queriam que ele retirasse do ar”, conta o biógrafo.