Médicos à disposição da saúde pública diminuem no Brasil
A pesquisa Demografia Médica no Brasil 2015, da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), apresenta um dado preocupante em relação à inserção dos 432 mil médicos registrados no País: 21,6% deles trabalham exclusivamente no setor público e 26,9% só atuam no setor privado. Os demais, 51,5%, atuam nas duas esferas, a pública e a privada. Considerando a atuação exclusiva mais a sobreposição nos dois setores, são 78,4% dos médicos no setor privado e 73,1% trabalham no setor público.
Esse suposto equilíbrio numérico de médicos no público e no privado precisa ser relativizado, segundo Mário Scheffer, professor da FMUSP e coordenador da pesquisa. Na realidade, há uma grande desigualdade na concentração de médicos no setor privado se considerar o percentual de pessoas atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e por planos e seguros de saúde.
A pesquisa mostra que, em 2014, segundo estimativa do IBGE, o País tinha mais de 201 milhões habitantes. Em junho de 2015, de acordo com os números da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), os clientes de planos de saúde eram mais de 50,5 milhões. Os demais 150, 5 milhões de brasileiros recorrem exclusivamente ao SUS.
“Se pensarmos que só um quarto da população brasileira tem acesso a seguro e plano de saúde, estamos falando de uma imensa desigualdade. Uma parte da população tem à sua disposição pelo menos três vezes mais médicos. Já havíamos levantado isso em estudos anteriores. Agora, no inquérito que realizamos com os médicos, fica mais evidente”, alerta Scheffer.
Sobre os locais de trabalho dos profissionais, dos 73,1% dos médicos que trabalham no setor público (considerando a atuação exclusiva e nos dois setores), mais da metade (51,5%) está em hospitais.
Depois dos hospitais, os médicos do setor público ocupam com mais frequência os serviços de atenção primária em saúde (23,5%), que inclui unidades básicas (UBS) e Programa de Saúde da Família (PSF), seguidos dos serviços de atenção secundária e especializada (4,8%), que são os ambulatórios de especialidades, Assistência Médica Ambulatorial (AMA), Unidade de Pronto-Atendimento (UPA), Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), Centro de Referência de Aids, Hemocentro, Saúde do Trabalhador, etc.
Scheffer destaca que essa ausência de médicos na atenção secundária (4,8%) do setor público acarreta um grande problema para o SUS: a longa espera para consultas e exames de especialidades médicas, para cirurgias eletivas (aquelas que se pode agendar a data para a realização do procedimento cirúrgico).
O contraponto em relação aos serviços de atenção secundária, nos quais atuam médicos especialistas, está na concentração desses profissionais no setor privado. Entre os médicos que trabalham no setor privado exclusivamente, 68,2% têm título de especialista; entre os que atuam exclusivamente no setor público, 52% dos médicos são especialistas.
“Mais da metade dos médicos da área pública estão em hospital público e outra parte na atenção primária. No setor privado, os médicos especialistas estão muito mais concentrados em consultórios particulares, em ambulatórios privados, isso é um problema para o sistema de saúde. Para um sistema de saúde universal, do ponto de vista constitucional, como é o SUS, essa desigualdade público-privada na inserção dos médicos no sistema de saúde, é muito mais impactante do que a desigualdade geográfica”, afirma o professor.
No Brasil, ao concluir a graduação de medicina, os médicos podem ingressar em uma das 53 especialidades médicas reconhecidas. O título de especialista pode ser obtido após conclusão de programa de residência médica ou por meio de prova de títulos em sociedade de especialidade médica. O médico sem o título de especialista é designado, no estudo, como “médico generalista”.
Dos médicos brasileiros 59% deles têm título de especialista e os demais são generalistas. Seis especialidades concentram quase metade dos especialistas: Clínica Médica, Pediatria, Cirurgia Geral, Ginecologia e Obstetrícia, Anestesiologia e Cardiologia.
Situação hipotética
No estudo, os pesquisadores colocaram uma situação hipotética para avaliar a percepção dos médicos quanto ao setor público ou privado, em relação à preferência de trabalho, se os salários e as condições de trabalho fossem as mesmas.
Nessas condições, 58,2% dos médicos do País optariam por atuar no setor público. Os outros 41,8% disseram preferir a esfera privada. A maioria de homens e mulheres optaria por trabalhar no setor público. As mulheres, no entanto, são em maior número, 63,2% contra 54,5% entre os homens.
Para Scheffer, a estrutura do sistema de saúde é uma das principais causas do afastamento do médico do setor público, já que o sistema público estaria subfinanciado e sem investimento em ampliação da rede pública.
“Não há no SUS condições adequadas de trabalho não só para médicos, mas para outros profissionais da saúde. Os contratos são precários, os recursos humanos são terceirizados por organizações sociais e não há perspectiva de carreiras. Por outro lado, há um incentivo à expansão do privado com benefícios para planos de saúde, ampliação de redes de hospitais privados. Haverá cada vez mais concentração de médicos na estrutura privada porque os sinais que estão sendo dados são de diminuição do público e ampliação do privado”, destaca.
Fixação do médico
O estudo traz alguns fatores que levariam o médico a se fixar em seu local de trabalho. Os médicos apontaram como mais relevantes: “salário/remuneração”, “condição de trabalho”, “qualidade de vida”, “ambiente seguro/sem violência”, “possibilidade de aperfeiçoamento e especialização”, “plano de carreira” e “reconhecimento profissional”.
Os fatores “salário/remuneração” e “condição de trabalho” foram citados por mais de 98% dos entrevistados.
Outro dado da pesquisa mostra que os médicos brasileiros possuem múltiplos vínculos e possuem uma alta carga horária de trabalho. Quase metade dos médicos (48,5%) têm três ou mais vínculos e apenas 22% dos médicos têm um único vínculo de trabalho.
Sobre a jornada de trabalho, aproximadamente, um terço dos médicos (32,4%) afirma trabalhar mais de 60 horas por semana, sendo que 75,5% trabalham mais de 40 horas semanais. No País todo, de cada seis médicos em atividade, um trabalha 80 horas ou mais por semana, o que corresponde a 16,9% do total.
“Os múltiplos vínculos e a carga horária excessiva trazem prejuízos à qualidade de vida do médico e são ruins para o sistema de saúde, que não tem o médico fixado”, observa Scheffer.
USP