Recrutamento militar no Império era ‘caçada humana’ e mirava ‘vadios’
Não se pode culpar os jovens pela repulsa ao serviço militar. As condições de vida no Exército e na Marinha eram desumanas.
Da tribuna do Palácio Conde dos Arcos, a sede do Senado imperial, o senador Montezuma (BA) disse:
— O prazo longo [eram vários anos de serviço militar] é avaliado como escravidão. Vossas Excelências hão de ter ouvido, quando o indivíduo é recrutado, dizer-se: “Vai ser escravo”. No nosso país, o povo julga que o recrutamento é uma espécie de escravidão.
O senador Fernandes Chaves (RS) denunciou:
— É preciso mencionar a crueldade com que alguns comandantes castigam os soldados com chibata, chegando a ponto de mandarem dar até que o castigado perca os sentidos e caia por terra. Ainda há pouco morreu um soldado do 6º Batalhão que levou 800 chibatadas.
Outro problema foi apontado pelo senador Saraiva (BA):
— Senhores, qual é o obstáculo imenso que faz com que os nossos concidadãos tenham horror à vida militar? É que um homem do Pará ou do Amazonas, um pescador que nunca deixou o grande rio, que não sabe o que é frio, de repente é recrutado e marcha para o Rio Grande do Sul, onde vai sofrer os rigores de um clima muito diverso daquele a que está acostumado e lá morre em pouco tempo.
Segundo Saraiva, esses longos deslocamentos ocorreram na Guerra do Paraguai (1864-1870) e produziram resultados catastróficos:
— O primeiro batalhão que veio do Pará, com 300 a 400 praças, todos índios belíssimos, meses depois só tinha a quarta parte da gente que o compunha. Morreu quase toda. Eis aí por que o alistamento voluntário tem sido difícil.
Além dos muitos anos de serviço, dos castigos físicos e da transferência para regiões remotas, pagava-se um soldo irrisório aos soldados, oferecia-se alimentação deficiente e o trabalho era extenuante.
O senador Saraiva afirmou que era preciso oferecer algum tipo de vantagem aos soldados para que, assim, o serviço voluntário se tornasse atrativo e não fosse mais preciso recrutar à força. Ele sugeriu:
— Se o indivíduo que se apresentasse a servir no Exército pudesse contar com o cumprimento da promessa solene de que ele iria aprender a ler, escrever e contar, isso atrairia muita gente para os corpos, porque a praça teria muito interesse em aprender a ler e escrever de graça, para depois aspirar a lugares superiores.
De acordo com o Censo de 1872, nada menos que 82% da população brasileira era analfabeta.
O senador Fernandes Chaves fez outras sugestões:
— Convinha que se aumentassem os soldos, de modo que guardassem alguma proporção com os salários dos trabalhadores. Convinha, mais, que se garantisse um futuro aos soldados contratados, como se pratica na Inglaterra e em outros países, que se lhes desse direito à reforma [aposentadoria] como têm os oficiais, que se criasse mesmo uma caixa econômica em seu favor. Com estas e algumas outras medidas, se poderia por certo obter muito melhor resultado no engajamento.
Quando foi ministro da Marinha, o senador Holanda Cavalcanti afirmou que os cofres imperiais não tinham dinheiro suficiente para melhorar as condições dos recrutas:
— Sim, reconheço que o recrutamento [para a Marinha] é um flagelo. Eu queria que não se violentasse ninguém com recrutamento, que tudo fosse feito por contrato. Mas a diferença está no dinheiro. Deem-me [o Senado e a Câmara] o dinheiro necessário para se realizarem os contratos, que eu prometo que não hei de violentar ninguém.
A “caçada humana”, contudo, não era generalizada. Escapavam do recrutamento forçado os ricos e também os pobres que estavam dentro da rede de proteção de algum chefe político local.
No caso dos ricos, a dispensa ocorria porque as leis do Império não exigiam o serviço militar dos jovens que estudavam ou se dedicavam a determinados tipos de trabalho formal. Eles também tinham a possibilidade de pagar uma quantia em dinheiro ao governo para livrar-se do recrutamento.
No caso dos pobres sob proteção, a dispensa ocorria porque quem operacionalizava o alistamento eram as autoridades locais, que evitavam convocar os seus empregados e afilhados políticos e direcionavam a mira recrutadora para os seus adversários.
O senador Holanda Cavalcanti discursou:
— O recrutamento é recomendado às autoridades policiais ou administrativas e não há mais outras regras para o desempenho dessa comissão do que o arbítrio dessas autoridades. Cada um de nós deve saber o que se pratica no recrutamento, as injustiças e favores que se fazem e o quanto é difícil resistir aos pedidos das amizades em favor de um ou outro recrutado. Cada um de nós sabe que a ocasião de um recrutamento é a ocasião de vinganças miseráveis. É ocasião de se vingar daqueles com quem teve suas quizilas [inimizades] e dizer: “Amigo, para o recrutamento. Você assente praça para a Marinha. Você, para o Exército”.
As presas preferenciais das “caçadas humanas” eram os pobres que não serviam a nenhum senhor poderoso. Como muitos deles eram desempregados ou faziam serviços informais ou esporádicos, eram considerados “vadios”.
Normalmente se tratava de escravizados que haviam conseguido a alforria. No Império, nem mesmo a liberdade da população negra liberta estava 100% garantida.
O senador Fernandes Chaves disse que muita gente de bem evitava alistar-se na Exército e na Marinha porque não desejava conviver com aquelas pessoas de má índole:
— Cumpre enobrecer a profissão de soldado, não colocando nas fileiras, como até aqui tem sucedido, homens que são quase sempre as fezes da sociedade.
Na avaliação do senador Bernardo Pereira de Vasconcelos (MG), o serviço militar era uma boa forma de corrigir aquelas “fezes da sociedade”:
— Considero a lei do recrutamento que atualmente vigora no Império uma lei econômica, que tem feito muitos benefícios, porque não só nos tem dado soldados para o Exército, mas tornado trabalhadores muitos homens vadios.
Como primeiro-ministro do Império, o senador Visconde de Paraná (MG) avaliou que, considerando a composição social das Forças Armadas, estava fora de cogitação abolir os castigos corporais:
— A nossa legislação sobre o recrutamento excetua a maior parte das classes que se dão ao trabalho e à indústria, de sorte que o recrutamento recai quase exclusivamente sobre vadios, réus de polícia e mal procedidos. Ora, num Exército que pela maior parte assim se compõe e que talvez seja vantajoso que assim se componha, não é prudente abolir os castigos corporais. Abolindo-se esses castigos, não se poderia manter a disciplina.
O historiador e professor Vinícius Campelo dos Santos, autor do livro A Revolta dos Rasga-Listas: a subversão do recrutamento militar na província de São Paulo (Dialética Editora), explica que foi nessa época que a palavra “praça” entrou no vocabulário militar:
— Como esses vadios ficavam nas praças, onde eram capturados para prestar o serviço militar, os soldados rasos, aqueles sem graduação, passaram a ser conhecidos como “praças”. É um termo que se usa até hoje. Os soldados brasileiros que lutaram na Segunda Guerra Mundial, por exemplo, foram batizados de “pracinhas”.
De acordo com Campelo dos Santos, o recrutamento militar forçado no Império era utilizado pelo poder público, no fim das contas, como instrumento de controle social:
— A população negra, fosse ela escravizada ou liberta, era considerada perigosa. Temiam-se tanto ações criminosas individuais que ameaçassem as elites quanto insurreições ou levantes coletivos que ameaçassem a segurança do Império. O recrutamento forçado da população negra livre era uma forma de mantê-la constantemente vigiada e subjugada.
Além da fuga pura e simples, os jovens recorriam a outros expedientes na tentativa de escapar do recrutamento militar. Um deles era o casamento. Nas discussões do projeto que daria origem à lei do sorteio militar de 1874, o ministro da Guerra, senador Junqueira (BA), pediu que essa isenção fosse retirada da legislação imperial:
— Se estabelecermos como isenção os casamentos, teremos de ver muitos deles prematuros e infelizes. Conta-se que durante a Guerra do Paraguai muitos moços, para se livrarem do recrutamento naquela época, casaram-se e, na pressa de contraírem esse enlace, não escolhiam muito, unindo-se até alguns a mulheres que tinham o duplo da sua idade, o que deu causa a muitas infelicidades.
Junqueira também pediu que se acabasse com a isenção concedida aos estudantes:
— Com esta vasta rede de isenções, neste país ninguém deixará de ter uma matrícula de qualquer instrução secundária.
Ele prosseguiu nas críticas às isenções exageradas:
— Para fazermos 2 mil recrutas, precisamos mandar prender dez vezes esse número, isto é, cerca de 20 mil cidadãos, para poder depois proceder à apuração.
A diferença de tratamento entre ricos e pobres no recrutamento militar era gritante e provocava diferentes reações. Havia os que concordavam com ela, como o deputado e futuro senador Manuel Francisco Correia (PR):
— Senhores, para fazer a guerra, necessita-se tanto de sangue como de dinheiro. Sobre o rico, pesa mais o segundo imposto. Sobre o pobre, carrega mais o tributo de sangue. Mas isso está na natureza das coisas.
“Imposto de sangue” era uma forma comum de se referir ao serviço militar.
O senador Marquês de Paranaguá (PI), por sua vez, discordava do tratamento desigual:
— Não há igualdade nem proporcionalidade nesse imposto, de todos os mais oneroso, no imposto de sangue, quando um paga o tributo com o sangue e a sua vida e outro com o supérfluo da sua renda.
O senador Holanda Cavalcanti também criticou:
— É uma infração flagrante da Constituição, que estabelece que todos hão de contribuir para as necessidades do Estado na proporção dos seus haveres. Digam-me todos os que estão aqui sentados e também na Câmara dos Deputados se seus filhos são recrutados. Todos os senhores não pediram alguma vez [a dispensa de seus filhos]? A Constituição não nos deu esse privilégio, não diz que os filhos dos senadores e dos deputados não são recrutados.
Ele continuou:
— Esses pedidos e obséquios querem dizer que se falta à justiça, porque o que se dispensa em uns recai sobre outros. Eis a marcha do recrutamento! Depois de milhares de violências, vem só o desgraçado que não tem nenhum padrinho. A Constituição diz: “Todos serão obrigados a servir o país”. E vós dizeis: “Todos, menos estes e aqueles”. Isto é, todos os desgraçados, exceto os ricos e poderosos. Esses se divertirão em dar chibatadas nos pobres que se expõem aos perigos da classe militar.
A preocupação com o recrutamento militar vinha desde o nascimento do Império. Como o Brasil praticamente não dispunha de combatentes próprios, D. Pedro I precisou recorrer a soldados mercenários da Europa para travar as guerras da Independência, na década de 1820.
Várias discussões a esse respeito se deram ao longo das décadas seguintes no governo, no Parlamento e no meio militar. O Império, inicialmente, resistiu a fortalecer o Exército e “militarizar” a sociedade, por temer que, tal qual nas repúblicas vizinhas, surgissem líderes militares carismáticos capazes de provocar revoluções contra o poder nacional.
A insuficiência de soldados se tornou gritante quando explodiu a Guerra do Paraguai. No princípio, as tropas brasileiras contaram com o reforço dos chamados voluntários da pátria, mas a adesão deles não se sustentou ao longo da guerra. O Brasil precisou recorrer a escravizados.
Foi em 1869, em meio à Guerra do Paraguai, que uma comissão formada por generais e jurisconsultos apresentou à Câmara dos Deputados o anteprojeto que daria origem à lei de 1874, abolindo as “caçadas humanas” e estabelecendo a convocação militar por meio de sorteio.
O ministro da Guerra, senador Junqueira, avaliou que o sorteio enfim garantiria a abolição dos privilégios e das injustiças no recrutamento:
— Rendeu-se homenagem ao princípio da igualdade. Agora ficaremos livres de um recrutador arbitrário. Há de ser o nosso direito pleiteado perante as mesas inscritoras dos nomes, haverá os recursos estabelecidos por lei e finalmente ainda apelaremos para o juízo de Deus, que é o juízo da sorte. Esse juízo é imparcial.
O deputado Araújo Lima (CE) fez graça:
— Não se deve anunciar com pompa os nomes dos sorteados, porque isso é o mesmo que espantar a caça.
Muitos outros, porém, não viram o sorteio com bons olhos. O senador Pompeu (CE) o chamou de “loteria de sangue”.
Outro crítico foi o senador Saraiva. Segundo ele, já que o sorteio seria conduzido pelas autoridades locais, elas poderiam manipular o processo e decidir de antemão o nome dos sorteados:
— As juntas de paróquia e do sorteio cometerão fraudes com o mesmo sangue frio e com a mesma indiferença com que hoje as mesas eleitorais escrevem atas falsas e negam a identidade do votante. No interior, só serão sorteados os filhos dos adversários ou dos desvalidos. E depois o sorteado será procurado como criminoso e teremos de ver reproduzida em muitos lugares a caçada de homens, mas de homens legalmente designados para o serviço militar.
Para comprovar a tese de Saraiva, o senador Barão de São Lourenço (BA) contou uma história:
— Vossas Excelências não fazem ideia de se há de fazer por esses lugares [do interior] o sorteio. Há de dar-se o caso do sorteio que houve em uma certa embarcação que partiu daqui para a Europa nos tempos coloniais. A fome exigiu que se lançasse dentro de uma urna os nomes dos passageiros e da tripulação a fim de sortear-se um para ser comido. A sorte designou o único e pobre caboclo que ia bordo! Mas ele, que já se havia refugiado no alto de um mastro, disse: “Eu bem sabia que a sorte havia de cair em mim, mas os senhores não me hão de comer”. E lançou-se ao mar e desapareceu.
Após de uma longa risada, ele prosseguiu:
— Até aqui o recrutamento dava lugar a repetidos abusos e violências, mas em algum caso o abuso havia de ser punido. Porém, o sorteio sem nenhuma garantia a mais pode ser falseado impunemente.
– Agência Senado