Violência sexual no Marajó não é nada do que a ministra Damares diz
Antes de o barco alcançar a costa de São Sebastião da Boa Vista, é possível ver o templo da igreja evangélica Assembleia de Deus espetado entre as pequenas casinhas que abrigam o comércio local. Quando se pisa em terra firme, as conversas animadas negociando o peixe e o açaí se misturam ao barulho das crianças correndo e das muitas motos que disputam o espaço apertado da passagem com os cachorros e com os que estão chegando ou partindo. A igreja estava fechada, a vida acontece mesmo na beira do rio.
O município de São Sebastião da Boa Vista é conhecido como “A Veneza do Marajó”, por conta dos igarapés que cortam a cidade. Do rio vem a comida, o sustento; sobre o rio se mora; em suas águas se refresca do forte calor; e, sobretudo, o rio é a estrada, a via de acesso – mas só para quem tem barco próprio (e dinheiro para o óleo diesel) ou pode pagar passagem que pode custar mais de R$ 100 para Belém, dependendo da embarcação. Partindo de alguns lugares na zona rural, chega a R$ 350. Há furos de água (quando o rio se estreita) em que só se passa em embarcações menores, o que exige mais dinheiro para o combustível e muito mais horas de viagem. “O rio manda na nossa vida aqui no Marajó”, me diria algumas vezes a irmã Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante – freira que é referência no combate à exploração e à violência sexual de crianças e adolescentes no estado do Pará e coordenadora da Comissão Justiça e Paz da CNBB – nos dias que passamos juntas no arquipélago.
O Marajó tem 14 dos seus 16 municípios na lista dos menores IDHs do país, segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano do Brasil (com informações dos Censos de 1991, 2000 e 2010). São Sebastião figura entre as piores colocações no ranking com outros municípios do arquipélago, como Afuá, Anajás, Bagre, Breves, Cachoeira do Arari, Chaves, Curralinho, Gurupá, Melgaço, Muaná, Ponta de Pedras, Portel e Santa Cruz do Arari. Apenas os municípios de Salvaterra e Soure, que ficam no chamado “Marajó 1”, ocupam uma posição mediana. Melgaço – que ficou conhecido por causa das muitas reportagens denunciando a exploração sexual de meninas nas balsas de carga – está em último lugar na lista do país, na 5565a colocação.
É essa a realidade marajoara e só a partir dela se pode pensar a violência sexual contra crianças e adolescentes na região, diria em entrevista à Agência Pública a juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 8a Região Elinay Melo, referindo-se especialmente ao momento em que a ministra Damares Alves, durante apresentação do programa “Abrace o Marajó”, em julho deste ano, disse que as meninas do arquipélago são estupradas porque não usam calcinha. Na ocasião, Damares chegou a propor a instalação de uma fábrica de calcinhas no local. “Eu acho que a fala da ministra tem dois problemas muito graves: primeiro que ela mais uma vez culpabiliza a vítima ao dizer que o problema está na calcinha. Repassa para a vítima e para as famílias que estão naquela condição de extrema vulnerabilidade, de ausência total do Estado e de condições mínimas de vida, a responsabilidade pela violência. E a outra coisa é quando ela diz que quer fazer uma fábrica de calcinhas. Levar investimentos para o Marajó para fazer uma fábrica. É novamente um olhar equivocado porque você não pode ir lá uma vez e voltar decidindo o que eles precisam. Eles são os atores, eles têm que dizer o que precisam. Lá existem comunidades tradicionais que vivem de determinada forma. Não posso chegar lá com ideias prontas. A fábrica de calcinhas é o exemplo claro do colonizador chegando lá e dizendo pro colonizado o que ele tem que fazer”, diz a juíza (leia aqui a entrevista na íntegra), que em 2017 ganhou um prêmio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pela sentença que responsabilizou uma empresa de transportes de carga pela exploração sexual de crianças por caminhoneiros em uma de suas embarcações, constatada em um flagrante da polícia na região próxima a Breves e Melgaço.
A irmã Henriqueta, que estava no local com a polícia, se lembra com tristeza do episódio: “Ali no estreito de Breves [de um lado do rio fica Breves e do outro Melgaço], existe um foco muito grande de exploração sexual. As nossas crianças sobem naquelas balsas e muitas descem com pequenos objetos, às vezes com pequenos alimentos, um litro de óleo diesel, em troca da exploração do seu corpo. Eu conversei bastante com as duas meninas que foram encontradas nessa balsa. A de 18 disse que desde os 5 anos de idade era explorada sexualmente em troca de comida. Hoje ela diz que é ‘prostituta da balsa’ e que seu sonho é casar com um gaúcho pra sair da miséria [as balsas de cargas muitas vezes atravessam o país, então passam por lá homens de todas as regiões]. A menina de 9 anos disse que subia desde que se entendia por gente, pra ganhar comida”.
Henriqueta, que conhece cada canto do Marajó e trabalha nessa frente desde 2008, foi quem denunciou, na companhia do bispo emérito do Marajó, dom Luiz Azcona, o alto índice de violência sexual contra crianças e adolescentes à Assembleia Legislativa do Estado do Pará. A iniciativa resultou na “CPI da Pedofilia Paraense”, iniciada em 2008. O nome, aliás, é incorreto uma vez que hoje se faz uma clara diferenciação entre pedofilia – que é uma doença tipificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) – e crimes sexuais como abuso, exploração sexual, estupro de vulneráveis e qualquer tipo de violência sexual contra crianças e adolescentes.
Em pouco mais de um ano de operação, a CPI fez uma projeção de mais de 100 mil casos no Pará; em 20% deles as vítimas são crianças de até 5 anos. O relatório final, que foi apresentado em 2010, apontou também que não havia um perfil social específico para os agressores e citou entre eles políticos, empresários, padres, pastores evangélicos, professores, policiais e médicos, além de mostrar que em 81% dos casos a violência ocorre na família, envolvendo pai, padrasto, tio, avô e outros parentes ou agregados. Com dados mais recentes, somente no primeiro semestre de 2019, 1.400 casos de violência sexual foram registrados no Pará, a maioria contra jovens com menos de 14 anos.
Durante as investigações, que acompanhou presencialmente, Henriqueta diz que viu uma das situações mais impressionantes de sua trajetória. “Nós fomos pra um encontro com a comunidade no rio Tajapuru, e de repente eu saí e vi uma balsa. Chamei os policiais e disse: ‘Olha, a balsa tá vindo e, como tem muitas canoas atracadas, com certeza tem muita criança lá dentro’. Então a gente viu as crianças. Quando viram a lancha da polícia, elas foram saindo. E uma criança chegou até nós. Tinha uma senhora que estava pescando e estava com alguns peixinhos já dentro da canoa. A criança disse: ‘Tia, a senhora já pescou?’. E essa senhora respondeu: ‘Já pesquei, já consegui esses peixes’. Aí ela olhou pra ver o que ela tinha como isca. E disse: ‘A senhora ainda vai pescar?’. Ela disse: ‘Acho que não, eu vou parar por aqui’. ‘Então a senhora me dá esse resto de mortadela pra levar pra comer com os meus irmãos? Porque faz dois dias que a minha mãe não consegue comida’. Aquilo me chocou. Foi ali que eu consegui enxergar com mais profundidade que a base de tudo isso é o desespero. É a fome.”
Ainda não existem dados oficiais atuais sobre a exploração ou sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes especificamente no Marajó, segundo o Ministério Público (MP) do Pará, que está fazendo um levantamento que deve se tornar público nos próximos meses. As dificuldades são muitas – do acesso às comunidades ao silêncio, que resulta em subnotificação, decorrente de uma séria desconfiança nos órgãos públicos, e da precariedade da rede de enfrentamento e proteção às vítimas da exploração sexual.
Em São Sebastião da Boa Vista, por exemplo, um município com população de mais de 21.500 habitantes, não há delegado há mais de um ano. A polícia e o Conselho Tutelar não têm barco. Não há defensoria pública, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) não funcionam como deveriam, e alguns profissionais acabam acumulando múltiplas funções, como é o caso da promotora de justiça Patrícia Carvalho Medrado. Desde 2017, ela está em São Sebastião com uma equipe composta por mais duas pessoas, recebendo as denúncias que deveriam ser feitas na delegacia, atuando nos casos e fazendo um trabalho de conscientização sobre a violência sexual em dezenas de comunidades rurais, fiscalizando escolas e organizando audiências públicas. O Conselho Tutelar conta com apenas quatro pessoas, em esquema de plantão, para atender a cidade e o interior. “E olha que a situação aqui de São Sebastião está ótima perto de outros lugares do Marajó. Tem lugares que não tem servidor, que a internet é muito pior, que também não têm delegado, também não tem Defensoria… A coisa aqui é muito difícil e ainda assim não é uma das realidades piores na região”, diz Patrícia.
A violência que se repete
A sala de espera da Vara Única de São Sebastião estava lotada naquela terça-feira abafada, com todas as cadeiras ocupadas, pessoas de pé e do lado de fora, esperando atendimento. Homens, mulheres, crianças e bebês. Entre os casos que seriam julgados naquela tarde, havia dois de violência sexual contra meninas, um tendo o pai como agressor e outro envolvendo o padrasto, que havia sido preso e aguardava em uma das salas. As vítimas também esperavam o momento da audiência por ali.
Uma das histórias, de duas irmãs que vou chamar de Mariana e Luíza, me impressionou, não apenas pela violência cíclica, mas também por ser um retrato de todas as dificuldades enfrentadas com a rede de proteção. Mariana começou a ser estuprada pelo pai aos 7 anos. Sua mãe sabia, mas tinha medo do companheiro e não o denunciava. Aos 12 anos, a menina engravidou e teve o primeiro filho. Um ano depois, voltou a engravidar do pai. Nenhuma das duas gestações ocorridas aos 12 e 13 anos chegou ao Conselho Tutelar, como deveria acontecer. Dessa vez, a menina teve complicações no parto e precisou ficar na cidade por um tempo – sua família era de uma zona muito afastada e de difícil acesso – e tentou fugir com um rapaz. O pai descobriu, pegou as duas crianças dela e levou embora, proibindo Mariana de ver os filhos. O pai então passou a abusar sexualmente da filha mais nova, Luíza, de 7 anos. Aos 11, ela também engravidou. Sabendo que estava sob suspeita, o pai levou a filha para parir em outro município e apresentou documentação falsa. Os médicos suspeitaram e acionaram o Conselho Tutelar. Ele fugiu com a menina para um terceiro município, onde foi detectado que o bebê em sua barriga tinha morrido. Novamente o Conselho Tutelar foi acionado e dessa vez conseguiu buscar a menina. “Ela foi operada e fomos buscar. A viagem foi muito cansativa. Eu tive que deitar na embarcação e colocar ela por cima de mim pra ver se não chocava muito, porque ela teve complicações na cirurgia, pra não arrebentar nada”, contou a conselheira tutelar Paula Rodrigues. Para chegar na casa da família, a partir da beira do rio, são duas horas e meia andando no mato. Lá chegando, os conselheiros notaram as duas crianças menores e questionaram de quem eram. O pai disse que eram de uma filha que havia fugido. A partir dessa investigação se chegou ao caso das duas meninas.
“A gente denunciou o pai por estupro de vulnerável e trouxe as duas crianças para morar com a mãe biológica,” contou a promotora Patrícia. “O pai fugiu. E aí que vem toda a falha do sistema de justiça. Demorou-se muito tempo para analisar o pedido de prisão. Quando saiu o pedido, a polícia não tinha lancha para ir até o local. Quando foi, não encontraram ele. Aí a polícia voltou. A gente já tem notícia de que ele voltou pra casa e que a menina tá grávida de novo”, lamenta Patrícia.
Ela aponta também falhas na rede de proteção, que se repetem no caso de Daniela*, que hoje tem 15 anos e mora na casa de uma família que a adotou quando, aos 11 anos, engravidou do pai e foi expulsa de casa pela mãe. Fomos visitar Daniela. Ela é pequena e tímida. Passou quase todo o tempo calada, mas se animou quando Júlia, a fotógrafa, perguntou sobre seu colar. “É do BTS, eles são coreanos, fizeram um show em São Paulo!”. Foi o máximo que quis falar naquele dia. Quando a irmã Henriqueta apareceu, ficou visivelmente emocionada, os olhos marejaram e ela disse que não se lembrava dela. Mas depois “lembrou”. A irmã ajudou no resgate e acompanhou seu processo de adoção. A bebê, que hoje é criada como sua irmã, não sai do colo da mãe adotiva. Vestidos de princesas e bonecas estão por toda a casa. A promotora Patrícia conta que Daniela passou por uma fase depressiva, em que falava em tirar a própria vida, não aceitava a filha e, segundo o Cras, se negava a receber atendimento psicológico. “Aí eu chamei a família acolhedora, conversei. Fiquei sabendo que o psicólogo estava dizendo para a menina que a mãe adotiva não era sua mãe verdadeira e que ela tinha que procurar a mãe biológica. A mãe! Que ficou do lado do agressor mesmo com o exame de DNA em mãos e que até hoje paga advogado para o homem. Obviamente ela não queria procurar essa mãe. Então é todo um desserviço, eu tive que judicializar a demanda para que ela tivesse um atendimento psicológico apropriado e contínuo garantido. Os profissionais não estão preparados e, por causa da alta rotatividade de funcionários, nunca dá tempo de treinar essas pessoas.”
Os casos como o de Mariana, Luíza e Daniela, envolvendo familiares, são majoritários em São Sebastião. Em 2019 foram registrados 11 casos, e os conselheiros tutelares falam em 18 atendimentos. Patrícia diz que o número de denúncias tem aumentado, mas que isso não significa que haja um aumento no número de casos: “A maior parte dessas denúncias estão vindo, pela primeira vez, da zona rural e viraram processo. E isso está relacionado a palestras de conscientização que nós temos realizado nas zonas rurais. Antes essas denúncias praticamente não chegavam”.
Saindo do Fórum, a promotora pergunta: “Querem ver o lixão da cidade? Só precisamos atravessar a rua”. A imagem é esta: mais de um quarteirão de lixo a céu aberto, coberto por urubus e cachorros, que saem dali e vão brincar com as crianças no centro da cidade.
O protagonismo das meninas e a escola interditada
A comunidade Nossa Senhora de Nazaré, que faz parte da zona rural de São Sebastião da Boa Vista, já estava toda reunida e com o lanche posto quando encostamos o barco junto à beira. O dia seria dedicado ao encontro “Diálogos do MPPA com a rede de garantia de direitos da criança e do adolescente no combate à violência sexual no arquipélago do Marajó”, uma série de encontros que tem rodado o Marajó. Crianças e adolescentes, que prestavam atenção, alguns tomando nota, eram a maioria do público. Além das palestras da promotora Patrícia e da irmã Henriqueta sobre o que era, como identificar e a quem relatar o abuso sexual, houve uma palestra da Marinha sobre a importância de proteger os motores dos barcos para evitar o escalpelamento, uma vistoria na escola e no posto de saúde locais, e também uma audiência pública. A vistoria na Escola Municipal de Ensino Fundamental Justiniano Barreto, que atende atualmente mais de 60 crianças, constatou que não havia água na cozinha nem descarga no banheiro, as salas de aula não tinham luz elétrica nem ventiladores, as paredes estavam tomadas por cupins, e os computadores, empilhados por falta de manutenção. A creche era apenas um prédio abandonado. O posto de saúde estava havia anos sem médico.
Era a primeira vez que o poder público, através do MP, chegava à região e todos quiseram falar na audiência pública. A maioria das reclamações era sobre roubos de piratas nas embarcações e tráfico de drogas e, também, sobre a dificuldade em acessar a polícia. Foi então que algumas adolescentes, incentivadas pela irmã Henriqueta, se levantaram e pediram a palavra. Elas queriam que a delegação também fizesse vistoria na escola delas, que como a outra não tinha luz nem ventilador. Elas contaram que a escola alagava quando chovia e fervia quando estava sol. Disseram que não tinha merenda porque os mantimentos eram saqueados antes de amanhecer.
Chamamos as meninas para conversar e ouvir o que elas tinham a dizer sobre o tema do evento e se tinham conhecimento da fala da ministra sobre a falta de calcinhas. Não tinham nem acreditavam que alguém pudesse dizer uma coisa assim. Era um grupo de cinco meninas entre 13 e 16 anos: “A gente tem conhecimento de meninas da nossa escola que foram abusadas por familiares e engravidaram, e também sabemos de meninas que saem com homens mais velhos por dinheiro, mas não tem nada a ver com falta de calcinha! Como pode alguém dizer isso?”. Quando perguntei o que elas queriam ser quando crescessem, disseram “delegada”, “advogada”, “lutadora”, “juíza”. Apenas uma queria ser dançarina. Por que essas profissões? “Para proteger nossa comunidade.” Porém, quando perguntei se elas sabiam a quem poderiam recorrer caso sofressem algum tipo de violência, a resposta foi unânime: “Não”.
No caminho de volta à cidade, a promotora atendeu ao pedido das meninas e parou o barco para vistoriar a escola Josiel Ferreira Santana, que atende 190 alunos da pré-escola ao 9o ano. A situação era ainda mais grave: a falta de luz e de ventilador nas salas relatadas pelos adolescentes fazia com que eles tivessem apenas duas horas de aula por dia, porque depois das 9 da manhã ninguém aguentava o calor. Não tinha merenda e havia morcegos, cobras e baratas, além de fezes de animais na dispensa que guardava os alimentos. Paredes com infiltrações, rastros de cupins, carteiras se desfazendo. O vigia que guardava a escola dizia que chegou a levar com ele a merenda à noite e trazer de manhã para ninguém roubar (quando chegava a merenda) e que eles já tinham pedido melhorias muitas vezes, mas nunca foram atendidos. Disse que havia crianças que vinham de locais remotos, a duas horas de barco dali – como a menina que queria ser dançarina. A escola seria interditada.
Nunca nem vi
Nenhuma das pessoas entrevistadas na reportagem, da comunidade aos ativistas, promotores, policiais, juízes, tinha conhecimento do que seria o programa do ministério de Damares para o Marajó. Ninguém, mesmo os que são referência em suas áreas de atuação, foi consultado nem conhecia os que teriam sido consultados. A única exceção era o bispo dom Luiz, mas, segundo a irmã Henriqueta, ele foi apenas convidado a acompanhar a ministra em sua primeira visita, não faz parte do programa “Abrace o Marajó”.
“Falta política pública para todos os segmentos, mas principalmente para a infância. As pessoas não veem a infância como futuro. ‘Vamos investir na educação, vamos investir em saúde, vamos investir nessas crianças para que a gente consiga sair dessa miséria.’ Falta interesse político e com certeza a falta de calcinha não tá nem na lista das necessidades das meninas e dos meninos aqui do Marajó. São meninos sofridos. São meninos que não têm oportunidade na vida. Muitos vão às vezes pra escola pra comer, quando chegam na escola não tem merenda ou, quando tem uma merenda, é uma merenda de péssima qualidade”, disse a promotora Patrícia. “Chegou aqui alguma coisa, alguma notícia do programa “Abrace o Marajó” para vocês, conselheiros tutelares?” “Nada. Nunca nem ouvi falar”, disseram os conselheiros. “E a senhora, irmã Henriqueta, que roda esse Marajó há mais de dez anos?” “Eu não tenho conhecimento de nenhum ativista da região que foi chamado para dialogar. Mas não sou eu que vou chegar e dizer o que a população precisa. O meu papel, enquanto sociedade civil, é alertar. ‘Crianças, vocês estão estudando bem? A merenda tá chegando aqui?’ ‘Não, não tá chegando.’ ‘Então, vocês precisam falar, reivindicar o que precisam’, como fizemos naquela comunidade.” E acrescenta: “Nós tivemos, faz um mês, em uma outra região, um outro município aqui de Portel em que a mulher denunciou publicamente a venda de crianças. Seis crianças foram vendidas por uma cesta básica. E esse é um governo que nos traz cada vez mais desesperança. Até por alguns comitês, por algumas iniciativas que já existiam e que estão sendo extintos. Fico extremamente preocupada porque um projeto não nasce assim de uma hora pra outra. Sem ter base, sem ter a participação da população local. É necessário que haja um diálogo. Algumas pessoas estão dizendo que há interesse político nessa vinda do ministério para cá, tanto porque Bolsonaro perdeu a eleição no Marajó quanto para internacionalização. Isso é o que eu ouço por aí. Essa fala da ministra causou muita indignação, principalmente pra nós, que lutamos pelas nossas crianças, e para as comunidades aqui da região. Não só da região, isso causou revolta em muitas partes do mundo.”
A última palavra é da promotora Patrícia: “Abraçar o Marajó é fortalecer a polícia, aumentar o efetivo, colocar batalhões nesses lugares que a gente sabe que o tráfico tá lá organizado. Com internet boa. Fortalecer a rede de proteção. No Marajó profundo, tem crianças que parecem esqueletos humanos morando em casas que não têm parede. As pessoas são mordidas por morcego e muitas morrem de raiva. O Marajó precisa de investimento no material humano dele. Não de fábrica de calcinha”.
Agência Pública – Texto: Andrea DiP – Fotos: Julia Dolce