11 de outubro de 2024
SAÚDE

Vital Brazil, que morreu há 70 anos, salvou milhões enfrentando doenças


Conheça mais da história do mineiro que abriu mão da patente do soro antiofídico e foi chamado de Pasteur brasileiro
A angústia de ter que correr com as pesquisas para encontrar uma saída tirava o sono dos cientistas do final do século 19 e início dos anos 1900. Um desafio de vida e morte. Dentre esses revolucionários da saúde daquela época, um rapaz do interior mineiro, da pequena cidade de Campanha, descrito como sensível, teimoso e empreendedor, foi insistente para salvar pessoas de um mal aparentemente irreversível, as picadas de animais peçonhentos.
Vital Brazil Mineiro da Campanha, pioneiro no desenvolvimento do soro antiofídico, descobriu que os venenos eram diferentes e necessitavam soros distintos. É o que os cientistas chamam de “especificidade antigênica”. Foi esse brasileiro que fez essa descoberta. Ele conseguiu. Valeu a teimosia. As pesquisas desse que é um dos principais médicos e cientistas da história do Brasil, que morreu há exatos 70 anos, salvaram, desde o início do século passado, um número incontável de vidas no mundo inteiro. Fez muito mais. Mas um detalhe dessa história é que o homem abriu mão de todas as patentes. “A maior recompensa para o homem que trabalha é a consciência de ter feito o bem”, costumava dizer. Poderia ter ficado milionário. Tudo o que as suas pesquisas geraram em recursos foram revertidos para os institutos em que atuou.
Para o pesquisador Érico Vital Brazil, neto do médico famoso, e responsável pela divulgação científica do instituto que leva o nome do avô, a história dele é marcada pela superação, teimosia e idealismo. E resistente, diga-se de passagem. Em uma época em que a expectativa de vida não ia além dos 50 anos, Vital chegou aos 85. “Era um empreendedor. Foi responsável pelo desenvolvimento e criação de dois institutos, o Butantan, em São Paulo, e o Vital Brazil, no Rio de Janeiro. As principais características do trabalho dele foram a superação. a pesquisa incessante e o estímulo à formação”. Na faculdade de medicina, os professores desestimularam o jovem Vital Brazil a essa pesquisa com animais tropicais. Era considerado um ramo menor e invisível. “E que leva muito tempo para obter resultados. Mas ele insistiu”.
O neto pesquisador entende que tanto os primeiros bacteriologistas como os que estão trabalhando em busca de remédio contra a Covid-19, atualmente, têm em comum o espírito criativo e agilidade. “Tantos núcleos de pesquisa estão se mobilizando com criatividade e agilidade. Era como aqueles primeiros do século passado”, afirma Érico. Para ele, a pandemia de 2020 traz à tona um cenário semelhante ao já vivido naqueles anos, da mortandade com as picadas dos peçonhentos, a peste bubônica, no final do século 19, e a gripe espanhola, a partir de 1918. por exemplo. “Hoje é possível ter uma ideia do que os cientistas daquela época viveram. Você saber de uma doença sem saber do que se trata, sem instrumental para conter. Essa sensação é o que essas pessoas tiveram lá atrás, há 100 anos”. Uma descoberta que vai se dando passo a passo, semelhante ao que aconteceu para conter febre amarela, a peste e tantas outras doenças que mataram milhões pelo mundo.

Um Brasil rural

Não foi fácil para Vital Brazil, reconhece o neto. O homem era filho de abolicionista e não tinha recursos para se manter no Rio de Janeiro para fazer a faculdade de medicina. Ingressou em 1891. Revezava-se entre estudos e dois empregos. Já durante a faculdade demonstrava interesse no que amedrontava a maior parte da população daquele Brasil majoritariamente rural, os bichos em meio às plantações. “Ele levava os estudos sobre cobra para faculdade para estudar. Ele sabia que morria muita gente de picada de cobra porque iam para o campo em função do ciclo do café”.
Quando se formou, foi trabalhar no serviço público de saúde em São Paulo.  Entre 1892 e 1899, ele esteve à frente no combate de epidemias, e depois se torna o primeiro inspetor em São Paulo. Primeiramente, trabalha com Cesário Motta e depois com Emílio Ribas, como secretário de Saúde do Estado. “Até a peste bubônica, ele está à frente no combate dessas epidemias”. Um fato específico, em 1895, direcionou os estudos de Vital Brazil naquela época. “Meu avô (médico havia quatro anos) foi tratar de uma menina em Botucatu (SP) picada por uma serpente e ele não sabia o que fazer. A morte da menina o sensibilizou ainda mais para encontrar a cura”.
Vital Brazil contraiu peste bubônica (que apareceu no início de outubro em 1899 e somente divulgada no final daquele mês) e febre amarela. Participava das brigadas contra essas endemias e mantinha interesse especial em pesquisar essas doenças que matavam aos milhares. A peste bubônica fez com que os governos federal e estadual se mobilizassem para ter seus próprios institutos de pesquisa. “Assim, Vital Brazil levou a pesquisa sobre ofidismo para o Butantan e criou o laboratório. Ele entregou o primeiro lote, no Brasil, de soro antipestoso em junho de 1901 e o primeiro lote antiofídico específico, do mundo, em 14 de agosto do mesmo ano. Foi muito rápido”.
As pesquisas de Dr. Vital chegaram longe. Em uma visita ao Brasil, o presidente americano Theodore Roosevelt ficou embasbacado com as descobertas do cientista. “Ao chegarmos a São Paulo, visitamos o Instituto Serumterápico (Butantan). O seu diretor é o Dr Vital Brasil,que tem realizado trabalho verdadeiramente extraordinário e cujos experimentos não são relevantes apenas ao seu país, mas a toda a humanidade”. Vital e Roosevelt passaram a ser amigos, inclusive com episódio em que o brasileiro salvou uma vítima naquele país e teve a história destacada no jornal The New York Times. O fato o deixou ainda mais popular além dos círculos científicos.
A comunicação com o público
O momento era revolucionário para a bacteriologia (os estudos de Pasteur, na França, são dos anos 1880). Nesse início do século 20 no Brasil, era necessário convencer o público-alvo que seria necessária a utilização do soro. Uma luta de Vital Brazil e de outro cientista célebre, Oswaldo Cruz.
Lembramos que o episódio conhecido como a Revolta da Vacina é de 1904, quando a população protesttes em relação à imunização contra a varíola. Vital Brazil tinha o desafio de falar principalmente com o homem do campo. “Algo que me chamou atenção é que as primeiras bulas do soro antiofídico eram desenhadas. Tínhamos uma população, em sua maioria, analfabeta, mas era importante que as pessoas conhecessem os riscos e que havia solução”.
Érico chama atenção para o fato que Vital Brazil conseguiu criar uma rede de colaboração com profissionais de saúde no interior. “As pessoas mandavam as serpentes para ele e ele mandava o soro para as cidades. Ele conseguiu que o conhecimento de complexidade enorme chegasse ao interior. Ele conseguiu que o campo produzisse sua própria salvação”.
Outro convencimento era a necessidade de criar as cobras em cativeiro e, também, os animais inoculados com o veneno (como os cavalos) que terão os anticorpos no plasma e formam a base do antídoto. Um problema era, naquela época, que a serpente remetia a uma série de simbologias, que inclui o “pecado”. “E o camponês era o público-alvo”. Até hoje, ressalta-se, os acidentes com animais peçonhentos ocupam a segunda causa de ataques contra o ser humano (perde apenas para a dengue). “Graças a essas produções dos três institutos brasileiros, o país é referência no tratamento e diminuiu o número de mortes”.
Vital Brazil saiu do Butantan aos 54 anos de idade e foi convidado para criar o instituto que nasceu de uma parceria público-privada, que acabou levando o seu nome. “Começou tudo de novo, mesmo já sendo um cientista consagrado”.  Um dos primeiros desafios foi o combate à tuberculose com a vacina da BCG. Em 1925, o cientista recebeu em seus laboratórios de Niterói os testes e ampolas enviados pelos cientistas Calmette e Guérin do Instituto Pasteur, da França.
Ele começou tudo de novo, deixou outro legado que continua salvando vidas pelo Brasil, sem custos para o usuário. As instituições são sustentadas com recursos estaduais e federais. Juntos, os laboratórios de pesquisa produzem cerca de 700 mil ampolas de antídotos contra picadas dos mais variados animais. “Quem trabalha aqui deve ter compromisso com a saúde pública e está aberta a novos conhecimentos e novas parcerias”, diz o vice-presidente do Instituto Vital Brazil, Luís Eduardo Cunha.
Como não é um laboratório privado, produz medicamentos mesmo em baixa quantidade, como é o caso do soro contra a viúva negra (cerca de 300 unidades por ano). Poucos, mas fundamentais para garantir a segurança no país contra ataques desse animal perigoso. Por outro lado, preocupados com os ataques de escorpião, também nas áreas urbanas, há a maior quantidade de medicamento.
Um soro em desenvolvimento é anti-apílico (contra ataques de abelhas). “Um produto inédito no mundo”. Os soros contra picadas de animais peçonhentos nunca tiveram produção paralisada no Butantan (SP), no IVB (RJ) e no Instituto Ezequiel Dias (em MG). Segundo os últimos dados do Ministério da Saúde, em 2018, os acidentes por escorpiões no Brasil somaram 156.833, com serpentes foram 28.946, e com aranhas, chegaram a 36.092.
Coronavírus
O Instituto Vital Brazil trabalha em parceria em dois caminhos terapêuticos para ajudar no combate aos efeitos do coronavírus. Por enquanto, os cientistas guardam as pesquisas a sete chaves e não revelaram detalhes dos projetos que são realizados com universidades e outras entidades em São Paulo e Rio de Janeiro. Mas a equipe está otimista para resultados no segundo semestre.
Vital Brazil trabalhou por toda a vida e faleceu aos 85 anos após complicações causadas por diabetes. “Não dá para quantificar o que significou para o mundo o que ele descobriu”, diz Érico. É verdade. Em Mumbai, na Índia (país que também busca diminuir o número de mortes por causa de animais peçonhentos), por exemplo, há uma homenagem ao brasileiro com um busto: “Este homem sozinho salvou mais gente do que uma guerra pode matar”.
No Brasil, para se conhecer mais sobre Vital Brasil, há documentos, fotografias e outros registros históricos na cidade natal dele. Em 1984, a casa em que ele viveu foi adquirida pela família e foi fundado o museu Casa de Vital Brazil. Desde 2008, o neto é o presidente dessa associação sem fins lucrativos. “É uma honra descobrir mais sobre a vida dele”. Setenta anos depois de sua morte, há uma herança de pesquisa ainda insubstituível. Mais de 119 anos depois do soro, como contabilizar em números quantas vidas foram salvas?  Se a busca da cura tira o sono, o legado de Vital Brazil pode ser mais uma pista para o despertar de um novo amanhã.

Por Luiz Claudio Ferreira Edição:Beatriz Arcoverde – Agência Brasil